domingo, 23 de dezembro de 2007

Um canto de liberdade

Nasci com o maravilhoso dom de voar!

Ainda me lembro de meus primeiros vôos em companhia de meus pais, quando, procurando imitá-los, sacudia freneticamente minhas frágeis asas, deliciando-me com a sensação do vento passando pelo meu corpo! O mundo visto de cima é ainda mais belo!

Ainda pequeno, comecei a alçar vôos cada vez mais altos e distantes de meus pais, e num triste dia, na minha curiosidade de jovem e na ilusão de alimento fácil, acabei ficando preso em uma armadilha que o homem chama de alçapão.

Agora vivo preso em um cubículo que o homem chama de gaiola, onde não me sobra espaço para voar, e tenho que me contentar em ficar pulando de um pedaço de pau para outro. Meu alimento é sempre a mesma coisa, alpiste e água. Não posso escolher uma fruta madura ou uma minhoca.

Mais cruel ainda, o homem me coloca na varanda de sua casa, onde fico olhando outros pássaros, soltos, voando livres e cantando felizes.

Eu também canto, mesmo preso na gaiola. Não devia cantar, mas canto para mostrar ao homem que esse dom ele não pode me tirar. É um canto de revolta!

Se um dia o homem que me prendeu fosse colocado em um pequeno quarto, onde só houvesse uma mesa e uma cadeira, espaço suficiente para dar um ou dois passos e lhe dessem todos os dias um prato de comida igual e um pouco de água, onde só tivesse uma pequena janela com grades que lhe permitisse ver as outras pessoas andando livres e soltas, talvez ele pensasse em me libertar.

Pode ser que na minha inexperiência eu não conseguisse sobreviver por muito tempo, mas tenho certeza que mesmo neste tempo curto eu seria muito mais feliz, nos meus vôos livres.

Prometo que viria todos os dias cantar na varanda dele, um canto alegre.

Um canto de liberdade!

Paulo Borchert

O bom ladão

Paulo Borchert

Vinte e um de julho de 1958. Lembro-me bem da data porque era o aniversário de meu irmão, e estávamos em plena Copa do Mundo de futebol. Tínhamos acabado de mudar para um apartamento no terceiro andar na Rua Alberto de Campos em Ipanema, num prédio antigo sem garagem, que era rara na época, pois havia poucos carros em circulação. Meu pai tinha um Hudson Hornet cor de cobre, um daqueles carrões americanos enormes que ficava estacionado em frente ao prédio. Tínhamos combinado na véspera de irmos ao Cristo Redentor e à noite teria um bolo em casa para a família e alguns amigos.
Meu pai ao acordar se surpreendeu com a ausência do carro na rua e saiu gritando pela casa:
-- Roubaram meu carro! Roubaram meu Hudson!
Roubo de carro era raro naquela época, e ele após dar queixa na polícia, pegou o carro do meu tio emprestado e fomos ao Cristo conforme combinado. Ainda me lembro da imagem de meu pai debruçado na mureta do Corcovado olhando para a cidade lá embaixo, como se procurasse seu carro.
À noite estávamos em casa na festinha de aniversário de meu irmão, quando tocou o telefone. Meu pai ao atender começou a xingar algum provável amigo que lhe passava um trote, dizendo ser o ladrão do seu carro, e bateu com o telefone, praguejando e justificando sua irritação. Logo em seguida o telefone tocou outra vez e meu pai pediu ao meu tio para atender. Meu tio Nelson dialogou por alguns instantes e contou o que ouvira:
-- Era o ladrão de novo. Ele disse que não é ladrão, e só pegou o carro pra sair com uma moça, e que o deixou na Rua Prado Junior em Copacabana, em frente à agência Pavão. Ele se desculpou pelo transtorno, dizendo que pretendia deixar mais perto daqui, mas acabou a gasolina.
Meu pai resmungou dizendo que era trote, pois tinha comentado sobre o roubo com vários amigos, e que meu tio era bobo de ter dado trela.
Meu tio disse que o ladrão falou de uma gravata verde que estava no porta-luvas, e alguns vidros de remédios em uma caixa na mala do carro.
Foi aí que meu pai se tocou que podia ser verdade apesar do inusitado da história, e após insistência do meu tio resolveram ir até o local indicado, ainda com a suspeita que só iriam encontrar com algum amigo palhaço.
Chegando ao local lá estava o Hudson estacionado, intacto.
Foram até um posto, compraram um galão de gasolina, e meu tio que era dono de uma oficina mecânica fez o carro pegar, após tirar o ar do carburador. Voltaram para casa a tempo de comerem o bolo e festejarem duplamente
Parece piada ou invenção de cronista, mas é a pura verdade.
Já não se fazem mais ladrões como antigamente!

É fim de ano

Fabio Bastos

Varandas enfeitadas e iluminadas anunciam a chegada do natal. Shoppings lotados de gente feliz carregando sacolas de compras. Papais Noel de aluguel atraem fregueses nas portas das lojas. Crianças escolhem nas vitrines os presentes mais caros para desespero dos pais. Listas do carteiro, lixeiro, porteiro, jornaleiro e até do entregador de pizza. Em boa hora chega o décimo terceiro e ajuda a bancar a festa.
Bares e restaurantes repletos de pessoas confraternizando. Amigo oculto e troca de CDs pirata, agendas, águas de colônia de farmácia e inutilidades para o lar. Hora de abrir presentes e corações para reatar velhas amizades, de renovar planos para o ano que vai iniciar, mesmo sabendo que dificilmente irão se realizar. Planos de voltar a estudar, pagar as dívidas, poupar dinheiro, viajar, trocar de carro e fazer aquela plástica a muito sonhada.
Noite Feliz. Casa cheia de gente com roupa nova. Árvore de natal piscando e crianças correndo em volta ansiosas para abrir os presentes. Parentes distantes trocam informações sobre quem nasceu e quem morreu; quem casou e quem se separou. Mesa farta com fila para se servir de peru, pernil, presunto, bacalhau e farofa. Faz calor no natal tropical, uma cervejinha gelada cai melhor do que um tinto encorpado. A tia velha e gorda se empapuça de pernil, rabanadas, nozes e castanhas. Que se dane a dieta, pode ser seu último natal. Algazarra na distribuição de presentes. Fim de festa com papel de presente espalhado pelo chão e crianças dormindo nos colos dos pais.
Uma semana de trégua e a festa recomeça. Especial do Roberto Carlos, reveillon do Faustão e flores para Iemanjá. Queima de fogos em Copacabana e árvore flutuante na Lagoa. Meia noite. Espocam champanhes e planos para o ano novo. Bebedeira geral. Gente de branco pelas ruas se abraçando e saudando o ano que acabou de começar.
Ressaca logo no primeiro dia. Aos poucos o sonho se desfaz e a vida volta ao normal. IPTU, IPVA, cartão de crédito para pagar sem o décimo terceiro para ajudar. No ano que vem tudo vai mudar.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Definido

Definido
Pedro Widmar

Este natal já sabia o que ia ganhar. Pedi a todos que contribuíssem para me dar um dicionário Houaiss. Desde vê-lo pela primeira vez fiquei encantado. Adoro livros. De toda espécie, e pra quem acha que não se pode ler um dicionário, digo pfff. Mas fiquei decepcionado ao examinar a publicação pois sempre tive a mais alta opinião de sua integridade. E admito que por isto não desisti dele ao ver que algumas definições estavam incompletas enquanto outras estava plenamente erradas. Atribuo estes erros de definição em maior parte a serem definições que apesar de caberem nos dicionários internacionais não se conduzem com a realidade do Brasil. Porem, Submeto então minhas sugestões para aprimorar a edição que categorizei em duas partes: definições acrescentadas e definições re-escritas.

Definições Re-escritas

Cidadão- Um ser sujeito a todas as imposições do governo, sendo elas financeiras ou proibitórias, que em nenhuma hipótese deve se beneficiar de algum de seus direitos. O ente apesar de reclamar obsessivamente dos problemas infra-estruturais do seu sistema político, não deve se submeter a qualquer esforço para muda-lo. Predominante na vida do ente deveria sempre estar o futebol.

Político- Um ser cuja eleição democrática o determina impunível pelas normas sociais, e que é encarregado de agir nos interesses próprios para garantir o enriquecimento desproporcional à quantidade de trabalho durante seu mandato. Este apesar de ter algum conhecimento das realidades do território ao qual governa, não deve se aproximar desta realidade. Por isto deve ser remunerado de maneira que o deixe viver fora dos padrões de seus sujeitos. * mais facilmente comparado a nobreza do que com funcionário publico.

Imposto- Carga tributaria imposta a cidadãos (excluindo sempre políticos e seus parentes) que é distribuído entre setores do governo. A carga monetária uma vez distribuída deve ser destinada ao melhoramento de instituições publicas. Este sistema se baseia numa relação monetária em que por toda parte digamos (X) que se encaminha à instituição, uma certa parte (Y) deve ser depositada diretamente numa conta off-shore para o uso do político que gerencia aquela instituição e outra parte (Z) para a conta de quem a depositou. **Normalmente a relação entre as três partes funciona de tal modo. Z+Y= X/2

Melhoramento- uma espécie de publicidade escrita ou verbal que demonstra as fartas melhoras de algo, independente de seus reais índices de progresso ou se de fato o mesmo existir.

Responsabilidade- Carte-Blanche.

Ordem- Caos incontrolável devido à falência e corrupção institucional das instituições publicas. Uma espécie de anarquia em que todos estão sujeitos ao que os armados quiserem. A idéia vem mão em mão com progresso.
Progresso- Estagnancia demarcada por ma distribuição de bens. A teoria de progresso deve sempre ser agrupada com publicidade ao inverso. *veja melhoramento.

Vida- Sobrevivência.

Definições Acrescentadas

À definição de MULTA acrescentar : de característica monetária, imposta sem nenhum efeito repressivo ao comportamento que pressupõe alterar.

À palavra CADEIA acrescentar : Casa e comida garantida aos custos da sociedade onde criminosos aprimoram sua profissão através de confraternização com outros presos.

À palavra POLICIA acrescentar : Profissão que providencia dois ou mais salários, dependendo da disposição do individuo. Deve ter o mínimo de conhecimento das leis que impõe e em caso de falhar a este requerimento, deve fingir o tal para fins lucrativos.

Por enquanto não tive chance de ver mais que isto, mas com tempo espero aumentar minha lista de correções para serem mandadas à publicação. Em esperança de que as palavras do livrão de referencia fiquem relativos às realidades sociais, convido todos a adicionarem suas definições mandando um e-mail para o Houaiss. Ou pelo menos espalhando esta crônica

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Tatá

Eu tinha cinco ou seis anos quando a conheci, e ela estaria beirando os quarenta. Fora transferida para ensinar psicologia na Escola Normal Oficial da cidade onde o irmão, mais velho do que ela, casado, com cinco filhos, dirigia uma indústria têxtil.

Muito amiga do irmão – embora este se divertisse a provocar sua irritação, o que raramente conseguia – e mais ainda da cunhada, aceitou de bom grado o convite e foi morar com eles. Com eles morou, de forma intermitente, durante quase quarenta anos.

Não era bonita, mas também não era feia. Alta, de corpo bem feito, tinha um porte altivo que impressionava mais do que uma simples beleza convencional.

Rebelde, sem ser revoltada, tinha e mantinha seus pontos de vista com argumentos inteligentes e baseados em sólida cultura humanística. Isso levava a discussões acaloradas com o irmão, também senhor de cultura diversificada.

Professora primária, formada em pequena cidade do interior, onde morava a família, com dezessete anos entrou para a Escola de Aperfeiçoamento de professores em Belo Horizonte, tornando-se a aluna mais jovem daquela que, depois, se tornaria o Instituto de Educação.

Católica praticante, sem ser carola, não admitia que se pusesse em dúvida os ensinamentos da Igreja. A publicação do livro “E a Bíblia tinha razão”, enorme sucesso editorial na época, estimulou seu espírito combativo e, onde quer que tivesse oportunidade, declarava, para quem quisesse ouvir, ser o título do livro um absurdo porque “onde já se viu pôr em dúvida o que está escrito na Bíblia?!”.

Sua amizade com a cunhada, mulher de grande sensibilidade, tornou sua presença naquela casa – onde poderia ter sido considerada uma intrusa – natural e até mesmo bem-vinda. Contribuiu decisivamente para a manutenção de um ambiente cordial e culturalmente estimulante.

Durante alguns meses, talvez mais de um ano, terminado o jantar ainda conversava um pouco e saia discretamente para seu quarto. O irmão, que gostava de implicar com ela, aproveitava para criticar o seu sono. Somente depois que prestou concurso para catedrática de estatística no Instituto de Educação em Belo Horizonte, soube-se que ela se retirava para estudar, sem alarde.

Parece que não fazia muita fé em sua aprovação, isto porque o outro candidato era o professor interino da cadeira, o que lhe dava uma vantagem comparativa. Surpreendeu a todos ao ser aprovada e classificada em primeiro lugar, o que lhe valeu a conquista da cátedra.

Mas não parou por aí. Pouco depois prestou concurso para chefiar – e na realidade para organizar a partir do nada – o serviço de seleção de um grande banco estatal. Foi aprovada com louvor e durante anos viajou pelo país a organizar exames de seleção de candidatos a emprego.

Ao lado de seus inúmeros triunfos profissionais e culturais, passou por uma grande frustração. Não conseguiu jamais realizar o seu sonho de dirigir o próprio carro. Parecia sofrer de um terrível bloqueio psicológico e, durante meses, cada vez que saía com o instrutor – jovem dotado de inesgotável paciência - tinha que aprender novamente a posição de cada uma das marchas.

Finalmente, em desespero de causa, resolveu apelar para um daqueles procedimentos alternativos que fazem a riqueza de nossa burocracia e conseguiu “adquirir” uma carteira de habilitação, o que a encheu de orgulho. Orgulho de curta duração, porque na primeira saída dirigindo seu “Fusca” recém comprado, subiu na calçada, quase atropelou pedestres e danificou o carro. Daí para a frente desistiu de dirigir e contratou um motorista.

Aposentada mudou-se para a cidade onde morara com o irmão e a cunhada. Foi morar sozinha, apenas com uma empregada que trouxe de Belo Horizonte e com o filho desta, menino com acentuada deficiência mental.

Continuou convivendo intensamente com o irmão, a cunhada, os sobrinhos e, mais tarde, os sobrinhos netos, cuja companhia lhe trazia grande alegria e lhe permitia – como gostava de frisar - manter-se atualizada com o mundo dos jovens.

Nunca se soube o que quer que fosse de sua vida sentimental, e nem se sabe se a teve. Parece ter sido uma página não escrita. Isso porém não lhe causou qualquer tipo de frustração, ou pelo menos não o demonstrou jamais.

Apesar da extensão e profundidade de sua cultura, apreciava leituras leves, principalmente romances policiais. Era profunda conhecedora da obra de Agatha Christie, Edgar Wallace, S. S. van Dyne e outros autores do gênero. Não apenas lia mas gostava de discutir as tramas com os mais jovens.

No final da vida vitimada por doença neurológica - provavelmente Alzheimer, ainda mal conhecido à época - não mais reconhecia as pessoas. A cunhada, por quem sempre nutriu uma enorme amizade e com quem sempre se entendeu às mil maravilhas, por ser bem mais baixa passou a ser reconhecida somente como “aquela menininha”.

Uma manhã acordou dizendo ter recebido a visita “daquela menininha”. Causou espanto quando se soube, mais tarde, que a cunhada havia morrido subitamente, na noite anterior, vítima de acidente automobilístico.
Faleceu com quase noventa anos, completamente alienada mas aparentando uma grande tranqüilidade. Antes de adoecer já havia tomado todas as providências para que sua fiel empregada e o filho ficassem adequadamente assistidos.

Carlos Augusto – 24 de abril de 2007

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O porre que mudou a história do Brasil

Fabio Bastos

Brasília, Palácio do Planalto, Gabinete da Presidência.
24 de agosto de 1961, seis da tarde — Abri uma garrafa e me servi uma dose generosa. Estavam todos contra mim, as forças armadas, os políticos da oposição e até os do meu próprio partido. Nem parecia que eu havia sido eleito presidente a menos de um ano e varrido com minha vassoura aquele marechal arrogante. Eles esqueceram rápido. O presidente americano havia apresentado um protesto veemente quando reatei relações comerciais com a União Soviética, China e Cuba. Eu queria ter visto a cara dele quando descobriu que também condecorei o Che Guevara. Por aqui também não pegou bem a condecoração, meus ministros militares não gostaram nem um pouco.
Acabou o gelo, servi uma dose caubói, dei um gole e despachei uma dúzia de bilhetinhos para meus assessores. Implicavam com tudo que eu fazia, reclamavam das proibições das brigas de galo, corridas de cavalo no meio da semana, lança-perfume e biquíni. Reclamavam até da roupa que eu vestia. Diziam que eu devia ter me ocupado com coisas mais importantes. Eles não sabiam o que era uma administração moderna e eficiente.
Dei mais um gole e a bebida desceu proporcionando uma agradável sensação. Até aquele jornalistazinho cretino que foi eleito governador da Guanabara se virou contra mim e veio falar em complô. Precisava dar uma resposta a altura para cortar as asas dele e colocá-lo no seu lugar. Se ele pensava que ia fazer comigo o que fez com o Getulio estava muito enganado. Decidi fazer um pronunciamento à nação pra mostrar com quem ele estava se metendo.
Reabasteci o copo e me preparei pra escrever o manifesto. Tinha que ser algo firme e contundente, algo que calasse a boca dele e mostrasse quem manda no país. Decidi transformar o manifesto numa carta de renúncia. Era isso! Ia dar um susto na nação ameaçando renunciar pra mostrar que eles precisavam mais de mim do que eu deles.
A idéia me empolgou, bebi num só gole e tornei a encher o copo. As palavras se multiplicavam no papel enquanto o copo se esvaziava. Já passava de meia-noite quando terminei a carta e a garrafa. Uma carta que iria sacudir o país. Fiquei cansado, mas satisfeito. Sem condições para ir até meu quarto dormi como estava no sofá do gabinete.
25 de agosto de 1961, seis da manhã — Acordei numa tremenda ressaca com a cabeça pesada e a boca amarga. Encontrei em cima da mesa a carta renúncia ao lado da garrafa vazia. Lembrei-me vagamente do que se passara na noite passada. Meu primeiro impulso foi rasgá-la, mas resolvi ler o que havia escrito. Fiquei sem saber quem eram as tais forças ocultas que mencionei, mas gostei do mistério que dava um toque de realismo ao pedido. Decidi enviar a carta como estava. Coloquei-a num envelope, lacrei-o e deixei-o na mesa da minha secretária com um bilhetinho para encaminhá-lo ao presidente do congresso às dez da manhã. Segui para meus aposentos e mandei Eloá preparar as malas porque íamos viajar.
Onze da manhã – No vôo para casa imaginei o impacto que a carta estaria causando e a cena do presidente do congresso reunido com os ministros militares discutindo meu pedido de renúncia. Eles nunca iriam aceitar e entregar o país para o meu vice. Ruim comigo, pior com ele e eles sabiam disso. Já instalado em meu apartamento em São Paulo aguardei a ligação de Brasília me implorando para voltar. Eu iria sair fortalecido daquela crise e imporia minhas condições. Eles não perdiam por esperar.
Três da tarde — O telefone tocou e fui comunicado que minha renúncia fora aceita e que eu já não era mais o Presidente da República. Meu governo durara apenas sete meses. O tiro havia saído pela culatra. Abri uma garrafa e bebi pra esquecer.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

A CRISE AÉREA

Fernando Thadeu

Fecho os olhos e adormeço. Em meio ao alvoroço, a correria, e a balburdia reinante no aeroporto. Ouço palavras sem sentido, finais de frases desconexas, dita por passageiros que cruzam por mim, num incansável vai e vem.

E as palavras vão se misturando na minha cabeça: ”viu só, os sinais estavam apagados”, “instalaram mais uma lombada eletrônica atrás de uma árvore”, ”a cidade está completamente abandonada, suja e mal cuidada”, ”o aterro do Flamengo está um lixo”, “teve mais um tiroteio na cidade” “sinto um envolvente barulho do vento”, “fecharam o túnel de novo?”, “será que nem Deus dá jeito mais nessa cidade?” “cara", muito pó ontem numa festa em Ipanema, precisava ver”, “vejo algo que se assemelha a um tempo perdido e irrecuperável, ouço vozes que vem de algum lugar”, “será que todos os sentimentos estão adormecidos?” “teve de tudo cara, por causa da mancha de batom na minha camisa: palavrão, tapa, empurrão, eu quase meti a porrada nela, mas depois fizemos as pazes, e de noite, fizemos loucuras no chão da sala, transamos como nunca”, “ouço um tilintar de garrafas, preciso beber”, “nos gabinetes fechados, estão os nossos donos”, “esquece o que passou cara, esquece essa mulher”, “quebra, quebra”, “deixa tocar a canção, eu me lembro dela nessas horas”, “joga tudo para o alto porra, cospe o que não presta, beija a mulher amada, mas não perde a razão”, “essa licitação vai ser uma mamata, cara, eu tô nessa”.

“Onde está o presidente dessa porcaria de companhia?”, “quero e vou embarcar de qualquer maneira, a minha lua de mel porra, a minha lua de mel”, “isso aqui é um circo, um grande circo, não somos palhaços, somos cidadãos”, “vocês são um bando de burocratas de merda”, “olha a gravata daquele senhor”, “porra, já estou aqui há seis horas”, “cara, olha aquela loura encostada no balcão falando no celular, essa mulher na cama deve ser uma loucura” “qual?”, “aquela que está passando batom, de vestido azul, porra, é muito boa, gostosa pra cacete”, “já pensou se eu conseguisse transar com ela dentro do avião?”, “não somos palhaços, somos cidadãos”, “calma, meu senhor, estamos tentando resolver”, “olha quantas pessoas estão dormindo no chão, quem vocês pensam que são?”, “São uns filhos da puta”, “não fale nada, cala a boca cara, não vai arrumar mais confusão”, “eu vou quebrar essa merda desse balcão”, “alô, meu amor, estou preso nessa porcaria desse aeroporto, aqui no Rio, mas morrendo de tesão, me espere com aquela camisola preta transparente, coloque aquele perfume que eu gosto, se esses merdas deixarem estarei em Floripa ainda hoje”, “prisão, para esses caras”, “por acaso, somos bonecos amestrados sem brios?”, “que merda de país é esse?", “Sou vou sair daqui, quando conseguir embarcar”, “Não somos um monte de babacas”, “em qualquer outro país, isso aqui já teria explodido”.

Acordo com um beijo. Oh! meu amor, está me esperando há muito tempo? Não, não era a voz de nenhum passageiro falando. Era ela: Beatriz. Beatriz Nogueira. A arquiteta de 32 anos, recém separada, sem filhos, de corpo escultural, uma mulher que eu havia conhecido há tempos atrás em Curitiba, durante uma viagem de negócios. Estávamos namorando há um ano.

Tinha a chave do meu apartamento, não era a primeira vez que ela vinha ao Rio para passar um final de semana comigo.

Entrou, e ao me ver dormindo, no sofá da sala, não quis me acordar. Desfez as malas. Tomou um banho, se perfumou, deu um jeito na casa, colocou uma camisola branca transparente e me acordou com um beijo na boca. Atônito e ainda meio adormecido, perguntei a ela como estava o caos no aeroporto: pelas pessoas xingando, pela lua de mel em Floripa, pelo pó da festa de Ipanema, pela camisola preta transparente, pela mulher que havia levado porrada e transado no chão da sala pouco tempo depois, pela loura gostosa que passava batom, pela transa no avião.

Ela ficou olhando para mim sem entender nada, assustada e perplexa. Caos no aeroporto, loura gostosa, transa no avião, lua de mel em Floripa, festa regada a pó em Ipanema, camisola preta transparente? disse, olhando para a sua camisola branca. Do que você está falando? Que loura gostosa é essa? Aeroporto? Meu amor, você acha que com essa crise toda eu viria de avião para o Rio? Vim de ônibus. Na rodoviária, peguei um táxi para cá.

Finalmente percebi que havia dormido com a TV ligada, assistindo o noticiário, que falava o tempo todo da crise área e do caos reinante nos aeroportos do Brasil. Percebi, então, que tudo não passara de um sonho, que nunca havia estado em aeroporto nenhum.

Senti um grande alívio. O que eu estaria fazendo num aeroporto? Além do mais, estava diante da mulher mais linda do mundo, que com um sorriso meigo e cativante, olhava para mim, com um olhar cheio de desejo e de saudade. Estava com os cabelos molhados que caíam sobre os seus ombros. A pele fresca e cheirosa. Sem dúvida, Beatriz era muita mais bonita e gostosa do que a loura do aeroporto.

Que crise, aérea, que nada. Que se dane o caos, a desordem, os atrasos nos vôos, a falta de equipamentos etc. Enfim, que se dane o mundo lá fora.

Estiquei a mão, olhei o relógio, eram duas da manhã. Apaguei o abajur que estava acesso e desliguei a TV que dormira ligada. Puxei-a para o sofá. Abracei-a. Ela estava totalmente envolvida nos meus braços.

Vi através da camisola branca e transparente os seus seios pequenos e bem feitos. Alisei os seus ombros, beijei o seu rosto, os seus olhos, beijei a sua boca. Sussurrei palavras sensuais, quase imperceptíveis ao seu ouvido. Ela fez que sim com a cabeça e sorriu. Beijei com mais intensidade ainda a sua boca enquanto lenta e vagarosamente tirava a sua camisola.

NO CALÇADÃO DO LEBLON

Fernando Thadeu

No calçadão do Leblon avistei a morena. Morena menina, pele bronzeada, cor de canela, cor da Bahia, corpo escultural, que amor, que beleza, que beleza de mulher. Seu corpo desnudo, sua boca, seu tudo, que esplendor. O sol no seu rosto, seu cheiro, seus contornos, seus lábios de mel. Que menina, que mulher. Sinto o desejo emanando de todo o meu corpo. Seus cabelos molhados, despenteados, lábios cor de romã.

Bebo uma água de coco, mas não tiro os olhos dela. Seu corpo magnífico me enlouquece de desejo. Fico em estado de êxtase e contemplação. É evidente que ela percebeu que eu não paro de olhar para ela. Está apenas dissimulando. A praia está vazia, o mar sereno e límpido. Jogou os cabelos para trás e para frente, como as mulheres fazem ao sair do mar, depois de um mergulho, num gesto calculado e cheio de graça. Tento imaginar suas preferências, seus planos, seus sonhos, seus gostos. Imagino milhões de situações: Aposto que gosta, entre outras coisas, de literatura, de poesia, de música, que, afinal de contas, enriquecem e alimentam o nosso espírito e iluminam e dão sentido às nossas vidas. Gostaria de ser o seu escultor.

Venço a timidez e me aproximo. Depois das apresentações de praxe, falamos sobre várias coisas. Coisas sérias e coisas banais. Falamos sobre a vida, sobre o amor, sobre as paixões, sobre encontros e desencontros, casamentos e separações.

Conversamos também a respeito da nossa cidade maravilhosa que infelizmente, apesar de toda a sua beleza, está completamente abandonada, suja, maltratada, com meninos cheirando cola pelas ruas, mendigos urinando pelas esquinas e dormindo sob as marquises da cidade, com várias ruas sem iluminação e cheias de buraco, que são verdadeiras crateras, do trânsito caótico que temos que enfrentar todos os dias, do crescimento desordenado das favelas, etc. Falamos até da verdadeira indústria de multas de trânsito que existe na nossa cidade, e ela me contou que já foi assaltada mais de uma vez ao parar o carro nos sinais de trânsito. Enfim, parece que já nos conhecemos há muitos anos.

Estuda Direito, malha numa academia, faz yoga três vezes por semana, gosta de dança de salão, diz que morou e estudou dois anos na França. Fala francês fluentemente, não come carne, nem doce nem bebe refrigerante. Não dispensa nenhum tipo de salada e só come arroz integral. Gosta de filosofia, arquitetura e literatura (adora ler romances, crônicas e contos) e não faz planos para o futuro. Simplesmente deixa a vida rolar.

Suas pernas são lindas e bem torneadas. Ela tem uma elegância discreta, uma pele macia, um corpo sensual e um sorriso absolutamente cativante. Tem um olhar atraente e meigo. Vislumbro os seus seios, através do sutiã. Tem a pele bronzeada e o rosto sorridente. Não, não há nada igual.

Aparentemente, parece ser o tipo de mulher que é ao mesmo tempo amante, amiga, companheira, felina, a mulher ideal. Ela fala baixinho, sussurra palavras no meu ouvido e sorri sutilmente. Adora cinema; Gosta de ouvir, Caetano, Chico, Nana, Bethânia, Marisa Monte, João Gilberto, Milton e Roberto, enfim, a boa, maravilhosa e inigualável MPB.

Caminha pelo calçadão todo o dia, de preferência pela manhã, tendo como cenário a limpidez e a beleza do mar do Leblon.

Tento decifrá-la, mas não consigo. Mas, não tenho dúvidas. Essa mulher é um deslumbre, é mais do que aquilo que o poeta sonhou. Ela é daquelas mulheres que brilham, que tem luz própria, que chamam a atenção, mesmo sem querer. Ela é luz, é estrela. E céu que ilumina a noite pagã.

Menina mulher, mulher menina, desejo que me escraviza e me enlouquece. Amante e rainha, filha do sol, do mar e da esperança. No final do dia trocamos telefone, nos abraçamos e nos beijamos na boca, longa, carinhosa e libidinosamente. Saio dali assobiando, rindo e cantando, feliz da vida. Vou contar ansiosamente, os minutos e os segundos que faltam para nosso encontro de hoje à noite.

Bem vinda

Marice
Bem vinda ao blog. Aguardamos seu texto.
Abs
Fabio

Tô Chegando

Olá Fabio, finalmente consegui entrar no blogger,logo enviarei uma crônica.

Dos quintos do inferno

Fabio Bastos

Minha crônica de abertura da Oficina 4

A chegada do ACM às profundezas do inferno foi apoteótica. Recebido pelo próprio Satanás e ovacionado por centenas de admiradores, e até mesmo por alguns desafetos, foi carregado nos ombros para o auditório local para fazer uma palestra sobre a política brasileira atual. Estavam todos ávidos por notícias frescas do outro mundo. Tão grande foi o interesse que o salão logo ficou lotado, com gente em pé pelos cantos e sentada no chão. ACM tomou lugar na tribuna e se preparou para proferir seu primeiro discurso dos quintos do inferno.
− Senhores e senhoras, caros colegas, correligionários e ilustríssimo doutor Satanás. Agradeço de coração a calorosa recepção que vocês me proporcionaram, mas deve estar havendo algum engano. Eu não pertenço a esse lugar, apesar de não ter nada contra os que aqui estão. Pelo muito que fiz em prol do povo brasileiro eu deveria estar lá em cima, num lugar de honra ao lado do Todo-Poderoso.
Gargalhada geral na platéia e alguém respondeu ao palestrante
− Logo você, o Toninho Malvadeza. Você é o nosso ídolo e estamos te aguardando aqui embaixo há muito tempo. Lá em cima não é lugar pra político brasileiro, muito menos pra Vossa Excelência.
A resposta arrancou risos e aplausos da platéia. Experiente, ACM esperou as palmas sossegarem e passou direto para o assunto da palestra.
− Vocês não têm idéia do que se passa no Brasil do século 21. A corrupção e roubalheira atingiram níveis inimagináveis. Está em todo lugar, na iniciativa privada, no congresso e nos governos federal, estadual e municipal. Nunca houve nada parecido, eu estou estarrecido. E olhem que eu conheço bem o assunto.
Nova onda de gargalhadas e palmas. ACM esperou mais uma vez o auditório se acalmar.
− A bandalheira tomou conta do país e os três poderes estão desmoralizados. Chegamos finalmente ao fundo do poço − concluiu de maneira enfática e fez uma pausa para observar a reação da platéia.
Geisel foi o primeiro a se manifestar.
− Eu avisei pro João Batista que era cedo para a tal abertura, mas ele não me ouviu e deu no que deu.
Todos olharam para o Figueiredo que deu uma resposta lacônica.
− Não tenho nada a ver com isso. Eu já pedi pra vocês me esquecerem.
Tancredo saiu em defesa da abertura política.
− Se eu não tivesse morrido tudo seria diferente. A culpa foi do Ribamar que não teve pulso para reconduzir o país para a democracia. Assim que ele chegar aqui eu vou dizer isso pra ele.
Mario Covas interveio para botar ordem na casa.
− Vocês não vão começar de novo com essa lengalenga porque ninguém agüenta mais. Esse assunto é passado e já morreu, como todos aqui. Vamos voltar a ouvir o nobre colega que acabou de chegar.
Aproveitando o momento de pausa, Lacerda levantou o braço e perguntou.
− O que vocês da oposição estão fazendo pra derrubar o governo? No meu tempo esse operário barbudo não teria se criado. Por muito menos eu fiz um presidente meter uma bala na cabeça.
— No peito — retrucou Getúlio sentado entre Jango e Brizola.
Antes que a discussão se alongasse, ACM retomou a palavra.
− Estimado governador Lacerda, folgo em revê-lo depois de tanto tempo. Não existe oposição, estão todos comprometidos e com o rabo preso com o governo. Sozinho eu não pude fazer nada, se ao menos o Luis Eduardo estivesse lá comigo. Mas com o apoio de vocês podemos fazer uma frente ampla e arquitetar o impeachment do presidente.
Novas gargalhadas e ACM notou que tinha falado besteira. Ulysses com sua voz cavernosa saiu em socorro do velho amigo.
− Meu caro Toninho, você ainda não entendeu a situação. Nós não podemos fazer mais nada, somos cartas fora do baralho, perdemos totalmente o poder. Eu sei que no início é difícil aceitar a idéia, mas com o tempo você se acostuma. Agora nós somos almas do outro mundo e a única coisa que podemos fazer é assombrar uns pobres coitados por aí. Outro dia mesmo um grupo saiu daqui pra assistir a abertura do Pan e puxou umas vaias no Maracanã.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O Agora é para Sempre


Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou.” Renato Russo

O Riachuelo disputaria naquela tarde a última partida do primeiro turno do campeonato juvenil de basquete.

Maurício, técnico da equipe desde o início do ano, não sabia mais o que fazer para melhorar o desempenho do time.

Os meninos treinavam bem, mas, na hora do jogo, a ansiedade dos jovens atletas colocava tudo a perder.

O nervosismo era conseqüência da vontade de chegar à divisão principal, o que, para a maioria, também representava a oportunidade de melhorar de vida.

Maurício, treinador novato, conseguira o título infanto-juvenil na temporada passada e buscava se firmar na profissão.

Tudo o que tentara, até então, não fora suficiente para fazer com que os jogadores ficassem à vontade durante os momentos de competição.

Enquanto refletia sobre o conteúdo da preleção que logo faria no vestiário, foi surpreendido com a pergunta de um senhor bem idoso que dele se aproximou.

- Será que eu poderia falar com os meninos?

Maurício imediatamente reconheceu o interlocutor. Era o velhinho solitário que ficava sentado, no último degrau da arquibancada, há algumas semanas, acompanhando os treinos e os jogos.

Maurício hesitou na resposta. Receava o efeito da fala sobre os atletas e, mais ainda, uma possível reação debochada dos adolescentes que pudesse constranger o orador.

Acabou permitindo, tendo apenas solicitado que a exposição fosse curta já que o aquecimento dos jogadores estava prestes a se iniciar.

- Meninos! Minha avançada idade permite que os chame assim. Há muitos anos atrás, neste mesmo ginásio, vesti o uniforme que hoje vocês estão usando. Fiz parte do time juvenil que conquistou o primeiro título estadual do Riachuelo. Fui dos poucos que chegou até a divisão principal. Ao contrário do que podem estar pensando, não fiz carreira como jogador. A vida me levou para outros caminhos. Felizmente, à custa de muito esforço, tive sucesso na vida profissional. Na vida pessoal vivenciei muitas alegrias e algumas tristezas. A maior delas, a perda recente da companheira de tantos anos, me fez ver que a vida já soprava em brisa. Surgiu em mim a necessidade de reviver os prazeres da juventude na esperança de não deixar o vento parar. Por isto voltei ao ambiente do esporte. Tenho vindo de longe, nas últimas semanas, para assistir os treinamentos e os jogos de vocês. O talento que demonstram nos treinos desaparece quando começam as partidas. A razão é muito simples: nos jogos, vocês arremessam a bola para a cesta mirando no futuro. Assim é impossível pontuar. Nosso time foi campeão movido pelo simples prazer de jogar. No basquete, o tempo pára de ser contado quando a bola não está em jogo. Na vida, o cronômetro está sempre em movimento. Não deixem a vida escapar enquanto se transportam para um futuro incerto. Melhor é depois poder recordar, como eu, um presente bem vivido. Mirem apenas no agora que as bolas vão começar a cair.

Maurício nada acrescentou à preleção, mandando os meninos diretamente para o bate-bola. Naquele dia, pela primeira vez, viu seu time jogar como era capaz.

No returno do campeonato, ganharam quando puderam e perderam quando não foi possível vencer. O título não veio, mas, sem saber, já tinham recebido o troféu: a lição do velhinho que passaram a entoar, a seu pedido, em cada grito de guerra antes das partidas - o agora é para sempre.

Arthur Narciso - setembro de 2007

Mundo Animal

Por Rosária Farage

Lembro que um dia li numa revista que Caetano Veloso, antes de ter o primeiro filho, não gostava de criança. Ele comparava os pequenos animais (racionais) aos cachorros. Chatos e inconvenientes. Apesar de já ser mãe naquela época, concordei com o artista. É difícil de admitir, mas muitas vezes o bichinho de quatro patas é ainda mais fácil de lidar.

Crianças de até 3 anos, por exemplo, dependem totalmente da gente. Mas são tiranos. Todos os dias nos levam à loucura com tantos pedidos e manhas. Querem tudo na hora! Quebram copos, aparelhos eletrônicos e enfeites. Rabiscam a parede branca que acabamos de pintar. Amassam e rasgam os cadernos de desenhos. E, ainda por cima, cismam em querer atenção na hora da novela.

Nos dias em que chegamos cansados em casa, eles estão elétricos. Quando queremos dormir cedo aparece sempre uma virose. Passamos a noite em claro e perdemos o dia de trabalho. O chefe pensa que somos irresponsáveis. E ao voltar para o escritório, encontramos a mesa cheia de serviço, só que o telefone não para de tocar. A empregada coloca o “malinha” na linha dizendo: “Mamãe, por favor, vem pra cá”.

É muito comum desejarmos que eles durmam logo. Mas quando caem no sono, dá vontade de acordar. Assim, nossas vontades nunca são as mesmas. E a cabeça dos adultos não consegue descansar. Por isso, podendo não os tenha. Se tiver, você vai se danar. E vai amar aquele que te maltrata. Tudo vai entender. Sempre vai perdoar. Vai dar o que nunca teve. Só que eles não vão valorizar. Nem se contentar.

Sendo assim, concluo que existem, de fato, inúmeras semelhanças ente os peludos e os carequinhas. Ambos fazem xixi na sala; deitam molhados no sofá; não arrumam à bagunça, nem limpam a sujeira; fazem muito barulho; incomodam a vizinhança; mastigam seu coração e por ai vai. Enquanto um late, o outro morde. Literalmente. Mas apesar de pequeninos, sabem assoprar direitinho.

domingo, 23 de setembro de 2007

A devastação

A Devastação


Acordei sacudido pelos tremores e suor abundante.
O pijama grudado na pele e o lençol todo molhado.
De quando em quando os pesadelos me assolavam, trazendo-me as lembranças.
Dei uma tragada no cigarro e as cenas começaram a passar em flash-back.
Conhecemo-nos em um baile de formatura.
Dançamos apaixonamo-nos e casamos.
Foram cinco anos de companheirismo e felicidade.
Tudo começou a mudar após o falecimento de minha sogra.
Soube por sua irmã que ela ficara transtornada, quando sua mãe em seu leito de morte segredara-lhe alguma coisa.
Não se abria comigo, pelo contrário, afastava-se cada vez mais.
Passou a me evitar, sempre tinha uma desculpa.
Aquela mulher apaixonada, fogosa ,impetuosa, que ardia de prazer
no ato do amor, não existia mais; levando-me a suspeitar que existia outro em sua vida.
Naquela noite,após uma festa em que abusáramos da bebida, fomos para a cama.
De repente tudo voltara.
A paixão, a entrega, os carinhos ousados,a permissividade.
Até que começou a murmurar em meu ouvido:
“Me bate,vai bate,com força, mais força, me ajuda, me livra deste pecado da luxúria para que não arda no fogo do inferno como minha mãe”.
Devastado pela paixão e pelo álcool, atendi seu pedido.
No dia seguinte, acordei com o som insistente da campainha.
Levantei-me trôpego,zonzo,do efeito da bebida e abri a porta.
Era a polícia.
Confirmaram o meu nome e me deram voz de prisão.
“Assustado, balbuciei tratar-se de um engano,pois estávamos dormindo”.
Foi quando me dei conta dos meus trajes.
Olhei meu pijama e, constatei horrorizado que estava todo respingado de sangue.
Corri para o quarto chamando-a, e encontrei a cama vazia e o lençol manchado de sangue.
Fui fichado, processado, humilhado,perdi a honra,a dignidade o emprego e os amigos.
Desprezado pela transgressão que cometera, cai no reino de Plutão.Onde no Hades, nos labirintos da minha consciência
purguei meu pecado, de ter perdido a razão devastado por uma paixão insana.
Tempos depois, cruzamo-nos na rua.
Fingiu que não me viu.
Observei-a: bonita, viçosa, aliança na mão esquerda e feliz.
Afinal, tinha sido expurgada do demônio da luxúria.

..

Mariza Reis Gabaglia

DIÁLOGO DE DOIS MATUTOS

Por Sergio Medina Quintella

[Os dois agachados embaixo de uma frondosa árvore no pasto da fazenda:]
-Oh Zé !
-Eh cumpadi!
-I as coisa cuméquivão?
-Pelejano, né cumpadi?
-Seu fio ficô bão da barriga?
-Ói, ficô bão memo, cumpadi
- E que qui cê deu pr’ele?
-Ué, as coisa qui Mariquinha falava pra dá
-Mas cumpadi, ondi ocê arrumou as coisa?
-Ué, nós fúmu no benzedero, eu e a muié
- Intão cês andaro muito.
-Cumpadi, eu acalculo umas seis légua
-I u minino também foi?
-Foi, né cumpadi? Cumé que nóis ia tratá dele longi?
-Óia, nós sabe que o benzedero trata das pessoa de longe memo.
-Mas nóis não tinha com quem deixá,Zé
[ Zé tira do bolso a palha de milho, o fumo de rolo de um saquinho de couro, espalha um pouquinho, enrola, passa cuspe na borda, fecha o cigarro e acende.Dá a primeira baforada pr’á cima, estica as pernas e retoma a posição:]
-Cumpadi, duma coisa pra outra
-Ocê podi falá Zé,
-Tô me alembrano.......Ocê conseguiu trepá naquela disgramada qui ocê tem na sua casa?
-Num é que consegui?
-Mas cumpadi cumé que conseguiu?
- De premero, fui logo garrano
-Dispois, bracei ela e chamei no peito e botei força
-Dispois fui fazeno assim e assim e assim e assim...
- Mas cumpadi, ocê num machucô?
-Machuquei não, Zé. De premero cumecei pelos pé e fui subino, mas a danada é arta, e eu num oiei muito não.
-Mas Zé vô ti dizê uma coisa: Cheguei no mei’dela mei cançado, purquê ela sacudia prumodi di fazê eu largá dela.
-Discunjuro Cumpadi !
-Óia Zé, chegô num ponto que disisti de trepá
-E que que ce fez cumpadi?
-Óia Zé, gritei a muié i pidi pr’ela trazê a escada.
-A mangueira era arta dimais...

sábado, 22 de setembro de 2007

FUTURO CONFORTÁVEL

Carmen Fontoura
Faltam poucos segundos... Estou chegando... A emoção toma conta de mim. Cheguei. Estou diante da casa, onde passei a minha adolescência. Muitas lembranças surgem, amontoadas, confusas. A idade talvez atrapalhe um pouco. Ou será a quantidade de lembranças?
Pouca coisa resta da casa onde vivi. O jardim murchou. As cores desbotaram. Os vizinhos não mais existem. A vida mudou. O sol brilha forte e esquenta. O clima mudou, mas, no meu conforto, uma espécie de bolha protetora, não sinto calor nem frio. Do meu conforto, sei que vejo cores que não mais existem. Respiro um ar especial, puro. Paguei caro pelo meu conforto.
Não me atrevo a sair do meu conforto. Vejo tudo daqui. Sei que a visão é tratada, mas vale a pena. Minha alma não é pequena. Quem escreveu? Não consigo mais lembrar... Como era?? Deixa pra lá!... Estou na frente da minha casa. Posso resgatar algum tempo. Posso sorrir um pouco mais. Se eu apertar a campainha, será que a música volta. Ah! Que delícia! Que som! É tratado, mas é muito bom.
Houve uma época em que chamavam terceira idade a minha faixa etária. Agora é idade confortável. Os velhos começaram a aumentar, aumentar... e tudo mudou. Passaram a ser ouvidos. Existem os direitos e os deveres. Ser experiente dá status e poder. Só a idade confortável conheceu o mundo diferente. Nem melhor, nem pior...
Está na hora de voltar. Meu conforto avisa. Foi gratificante voltar, rever, ouvir, lembrar, sentir. Infelizmente, não posso mais ficar. Tenho que voltar. Preciso trabalhar. As crianças esperam por mim. Aos noventa e uns, tenho um mundo a construir.

SENTIMENTO REAL OU VIRTUAL?

CARMEN FONTOURA

E-mail. I pod. I phone. Orkut. Chat. Terabytes. Second Life.Vivemos um momento de transformação radical. A era da informação e da tecnologia chegou arrebentando quarteirões. Essa transformação que estamos acompanhando, ou pelo menos tentando acompanhar, atinge toda a civilização. É impossível viver sem a tal da tecnologia. No princípio, estava restrita a poucos. Hoje, até mesmo as pessoas comuns, sem querer desmerecer ninguém, estão envolvidas nessa transformação, que passa por todos os níveis da nossa vida – casa, trabalho, lazer, estudo e... relacionamentos...
Alguma coisa melhorou para os mortais comuns: o compartilhamento de tudo. Alguns discordam da “perspectiva colaborativa” que circula pela internet, principalmente quando ela arranca lucros de seus bolsos, como as gravadoras de discos. Entretanto podemos compartilhar muita coisa boa e facilitar a nossa vida.
Nos novos caminhos podemos experimentar outras realidades. O avatar, por exemplo. Calma, eu traduzo: em informatiquês, avatar é a representação gráfica de um personagem criado em realidade virtual. É uma projeção do seu criador, uma imagem sofisticada em três dimensões, com todos os poderes e habilidades desejadas, que vive num mundo virtual, também idealizado.
Por que todo esse bla-bla-blá informático, se quero falar de sentimentos?
Porque estamos virando máquinas. Máquinas sem tempo de pensar A pressa nos consome. Não temos tempo para mais nada. A vida tornou-se um videoclipe. O corre-corre diário faz com que os relacinamentos passem a ser virtuais. Com isso os sentimentos caminham para a mesma direção. É complicado conseguir uma sintonia entre o ritmo acelerado da vida e o do sentir. Daí surgem os avatares. Quando não conseguirmos mais distinguir o real do virtual, vamos precisar mais e mais da fantasia para sentir. Ou teremos lojas em que se vendam sentimentos? Você poderá ir lá a qualquer hora e comprar um pouco de paciência ou de carinho. Boa vontade. Amor. Tolerância. Felicidade.
Será essa loja um computador?

O PRESENTE É O PASSADO SEM O FUTURO

CARMEN FONTOURA

O presente é o passado sem o futuro. Precisava escrever sobre o tema, mas algo não me agradava na frase. Talvez seja o fato de que o passado esteja sempre em nós e, se nós estamos agora, o passado também está. E o futuro? A Deus pertence, dizia minha avó, no passado já passado mesmo. Então, o futuro não pode ser sem o passado. Presente, passado e futuro são interligados.
No entanto, hoje, aconteceu algo que fez com que a frase tivesse sentido. O cachorro do meu pai morreu. Sem ambigüidade, embora meu pai sempre diga que aquele cachorro é, ou era, o seu dono e ele o cachorro, o cãozinho se foi. A tristeza de meu pai me comoveu. Aquele homem forte e grande tornou-se tão frágil. Tão pequeno. Eu poderia até levá-lo no colo.
Pingo só faltava falar. Era esperto, alegre e, o melhor de tudo, alegrava meu pai. Aprontava das suas, mas era educado. Comia a comida que, por acaso, era esquecida próxima a ele, mas o bicho era esperto... Bobeou, dançou! A criaturinha de quatro patas era a companhia do meu pai, o seu amigo, o seu cúmplice de preguiças e tardes vazias.
A dor de meu pai me fez entender a frase. Hoje o presente de meu pai é um futuro sem o passado, sem o amigo, sem o companheiro, sem o seu cúmplice. Mesmo triste, existe um futuro. Existe uma vida. A vida continua. Pingo já é saudade. E as palavras se calam.

O QUE É, O QUE É?

CARMEN FONTOURA

Coisa estranha! Muitos me adoram. Muitos me detestam. Alguns tentam me esconder, mas não consigo passar despercebido em nenhum ambiente. Sempre sou necessário, sempre existe alguém que precisa de mim, nem que seja para permanecer acordado. Ou para não sujar as mãos.
Os mais educados, seguidores da etiqueta, acham-me desprezível. Os hipócritas me usam escondido. Os escancarados não estão nem aí, usam-me, abusam de mim e, se for possível, me reaproveitam. Há ainda os tímidos, que só me usam sozinhos, no escuro e de porta fechada, ou melhor, trancada.
Minha origem é remota. Desde antes da Antiguidade. Posso ser feito de diversos materiais, mas, tradicionalmente, sou de madeira. E bem cara de pau! Nem ligo para o que pensam de mim, estou presente em quase todas as mesas.
Freqüento os mais variados locais, passeio por todas as camadas sociais. Não tenho preconceito. Estou sempre disposto a ajudar a todos. Faço sempre o serviço sujo. Algumas vezes, só eu posso resolver o problema. Tenho muitos usos e funções. Limpo e espeto. Unha e carne. E dente.
Às vezes, utilizam meu nome para xingar alguém. Quanta injustiça! E não precisa ser anoréxico nem bulímico. Faço sucesso entre as modelos e manequins. Todas querem se parecer comigo. Outras vezes, batizo coisas engraçadas. O desenho que nomeio é a forma mais rudimentar de representação humana. E agora, na era da informática, qualquer um pode fazer animação comigo. As crianças me adoram, principalmente, no sorvete. Até em pilhas estou presente.
Já sabe quem sou eu? Fala baixo. Aí vem a dentista que quer me trocar pelo fio dental. Ela diz que ele é bem melhor e ainda remove a placa. Quero ver ela espetar um queijinho na hora da cervejinha..
Fininho, mas duro, sempre pronto pro serviço. Palito, às ordens. Tudo de bom!!...

Calombo ou Colombo?

CARMEN FONTOURA
Estava eu refestelada sobre o meu sofá lendo um bom livro de crônicas, quando meu filho, curioso como ele só, me perguntou:
- Manhê, quem descobriu a América?
- Cristóvão Colombo. Já esqueceu? Estudamos isso na semana passada...
- Claro que lembro. Mas por que a América se chama América e não Colomba?
Criança tem cada uma. Nunca tinha parado para pensar nisso. Não sabia o que responder, afinal há tantos anos estudei sobre o assunto... Nem mesmo nos quinhentos anos da descoberta da América, que já faz um tempão, isso me chamou atenção. Agora vem um molequinho curioso me perturbar.
- Filho, a mamãe não se lembra mais. Mas vou pesquisar sobre o assunto e depois a gente conversa. Tudo bem?
Meu filho aceitou, também não tinha outra saída. Ele me conhece bem, sabe que realmente vou pesquisar e que vamos conversar sobre o assunto depois. E assim foi. Meu livro de crônicas tirou férias. Entrei na internet, google, páginas e mais páginas. Dizem que é tudo muito fácil com a internet. É só entrar num site de busca e pronto, a resposta surge como um passe de mágica. Não é bem assim. Surgem muitas abobrinhas e alguma coisa boa. Temos que saber peneirar.
Depois que pesquisei, veio o trabalho maior: como passar o resultado da pesquisa para uma criaturinha de nove anos? Tive que falar de Cristóvão Colombo, de Américo Vespúcio e de Martin Waldseemüller. Não conhece? Filho também educa. Eu não conhecia, mas, com a minha pesquisa, descobri que ele foi responsável pelo desenho do mapa-múndi, em 1507, com o Novo Mundo e com o nome América.
- Filho, o alemão Martin Waldseemüller era um cartógrafo, um cara que desenha mapas. Ele se baseou nas cartas das viagens do Almirante Américo Vespúcio para fazer o novo mapa. Quanto mais ele estudava, mais ele admirava o Vespúcio, por isso resolveu dar o nome dele ao novo continente. O pobre do Colombo morreu achando que tinha chegado às Índias. Vespúcio ficou com toda a fama.
- Já entendi, manhê! O Colombo ficou tão ligado nas índias peladas que se esqueceu de registrar os direitos autorais. O Américo Vespúcio era mais esperto, tinha amigos influentes e soube fazer o marketing. Deve até ter dado alguma propina para o alemão colocar o nome dele no continente. E o Colombo ficou vendo navios.

TRISTE CONSTATAÇÃO

CARMEN FONTOURA

Estamos enraizados num mundo consumista em que se compra e se vende tudo. Até a mãe. A sua. A minha, nem empresto.
Dona Maria entrou na loja soltando o verbo:
- Isso é um caso de polícia! Fui enganada! Levei gato por lebre!!!
Esbravejando, ameaçando procurar o PROCON, dona Maria exigia que a troca da mercadoria fosse feita imediatamente ou que seu dinheiro fosse devolvido, em dobro.
O rapaz que fez a venda era ainda inexperiente. Começara a trabalhar na loja há poucos dias e ainda não dominava a arte de arrumar justificativa para o que não tem, mas dava os primeiros passos.
- Mas a senhora levou exatamente o que pediu. Um produto bonito, portátil, fácil de usar, na especificação desejada e com manual. Em português. Por que a senhora está reclamando? O produto apresentou algum defeito de fabricação? Veio faltando alguma peça? A senhora usou seguindo as normas do manual? Carregou a bateria?
E fez um interrogatório sem fim. Emendava uma pergunta na outra, sem deixar a nervosa senhora responder.
Dona Maria ouvia as perguntas e mentalmente ia conferindo: é bonito, portátil, fácil de usar, com manual, manual em português, carreguei a bateria no tempo indicado, segui todas as instruções, os periféricos desejados acompanham o produto...
- Pera aí! – gritou dona Maria. Veio faltando um periférico importantíssimo.
- O quê? – perguntou o jovem vendedor.
- Ele não diz que me ama.
- Ah, Dona Maria! A senhora me pediu um produto que a acompanhasse a qualquer lugar. Que fosse fácil de usar. Que “funcionasse”. Não “funciona”? Que soubesse declamar poesias. Programei de Bocage a Vinicius. Que tivesse dinheiro. Que fosse fiel. E ainda quer que ele diga “te amo”. Aí, tá querendo demais. Um marido com sentimento não existe.
E dona Maria saiu da loja calma, mas triste. Triste porque vive num mundo consumista, que acha que pode comprar tudo e tudo está à venda. Mais triste ainda porque constatou que nunca poderá ter um marido como o meu.
Mooooô, volta logo pra casa!

Pau que nasce torto...

Carlos Melo

Era uma árvore alta, frondosa, bonita e viçosa, com um tronco enorme e vivia feliz e tranqüila na Floresta Amazônica. E eu era parte desse tronco. Eu era esse tronco. Certo dia, madeireiros inescrupulosos derrubaram-na junto com muitas outras, em mais um ato ilegal de desmatamento. A partir daí, minha vida mudou. E mudou para pior. Como se diz por aí: se transformou num inferno.

Alguns de meus irmãos, partes daquele tronco, se converteram em bonitos móveis de estilo e hoje enfeitam os aposentos de luxuosas residências de várias partes do mundo. Levam uma vida de fazer inveja a qualquer pedaço de pau jogado por aí. Outros sustentam telhados de modernas mansões, muitas delas, freqüentadoras das páginas de revistas especializadas. Olha só que baita responsabilidade ! Outros pedaços da árvore valorizam o piso interno de casas de famosos, requintando o ambiente onde desfilam elegantes damas de nossa sociedade.

Pois bem. A mim, esquecido pela sorte, coube o castigo de estar entre as aparas de meus irmãos, isto é, fazer parte das sobras de madeiras, cujo destino irremediável seria o lixo. Fizeram de mim, então, talvez por caridade, um simples palito. É bem verdade que meu destino poderia ter sido virar um palito de fósforo ou o palito de um picolé qualquer de segunda categoria. Mas isso não faria muita diferença. Sou hoje, apenas e tão somente, um palito de dentes.

Ao contrário de muitos derivados de troncos, meu local de trabalho é a boca do povo. Isso mesmo: não sou fofoca, mas vivo de boca em boca. Não preciso nem dizer que as bocas que freqüento não são as mais saudáveis. Claro. Bocas limpas e bem tratadas não precisam de mim. Obrigam-me a futucar cáries mal cheirosas e cheias de detritos. Cismaram que tenho que limpar essas imundas cavidades bucais. Dizem que é uma missão. Os dentistas me detestam; de dependesse deles, minha espécie estaria em extinção há séculos.

Houve um tempo em que algumas donas de casa, com certeza por não terem o que fazer, inventaram de enfiar em mim pedaços de pimentão, cenoura, queijo e sei lá mais o quê. Depois me espetavam num repolho e saiam me oferecendo às pessoas com o nome de “sacanagem”. Ora, não bastassem as sacanagens que faziam comigo me submetendo a trabalhos ridículos, resolveram dizer que eu era a própria sacanagem ... Foi demais. Felizmente isso saiu de moda. Foi uma fase negra da minha vida.

Querem saber de outra que fizeram comigo ? A namorada do Popeye, todo mundo sabe, é mais feia que uma fratura exposta, não é verdade ? Pois não é que botaram nela o apelido de Olívia Palito ! Quer dizer, para o bom entendedor, eu me tornei uma referência mundial de feiúra. Sei que não sou nenhum Gianechini, mas também não precisavam me tripudiar, pô ... É assim que me tratam, sempre me submetendo a situações de vexames, constrangimentos, humilhações ... Tem até pessoas que me usam como cotonete: envolvem um algodão numa de minhas pontas e aí esfregam em suas feridas fétidas ou então enfiam-me nos ouvidos de onde saio todo lambuzado de cera para resolver seus problemas de higiene. Tudo sem o menor respeito ou consideração. É assim: para mim só tarefas ridículas, como, furar bolos, jogar “palitinhos” (eta joguinho imbecil...), espetar azeitonas, coisas desse tipo. E em todas essas ocasiões, sou usado e descartado. Não me aproveitam para absolutamente nada. A rotina é me usar, me quebrar e me arremessar na lixeira mais próxima ou mesmo no chão imundo. Uma completa falta de respeito.

Jamais me encarregam de uma tarefa importante. Sou mesmo um João Ninguém. Tão desvalorizado que sou vendido aos punhados por um preço inexpressivo. Nunca, nem uma vez sequer, influenciei no preço da cesta básica. Isso é humilhante !

Talvez vocês estejam achando meu papo piegas ou lamuriante. Mas vejam se não tenho razão. Outro dia, a patroa gritou para empregada: “Maria, achei uma barata morta embaixo do sofá. Vem limpar, depressa !...” Sabem o que a desclassificada da Maria teve a audácia de fazer ? Sem pensar duas vezes, me pegou dentro do armário, foi até a falecida, me espetou no inseto nojento e jogou – eu e ela - na lata de lixo. Deixei essa vida espetando uma barata. Pode haver final de vida mais triste e indigno do que esse ? Ninguém merece !...

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Marcha do Tempo

Por Therezinha Mello
O Senhor do Tempo convocou seus colaboradores para uma reunião. Nessas ocasiões mantinha o universo temporariamente fora do ar, para acertar os ponteiros com sua equipe. Quando chegou à sala encontrou o Passado, já sentado à mesa, conversando com o Presente ainda de pé e que, pontual como sempre, havia acabado de chegar. Sentaram-se todos e ficaram aguardando o Futuro que, habitualmente, se fazia esperar.

O Futuro destoava pela personalidade difícil. Não gostava de especulações sobre a sua vida e era resistente a qualquer tipo de ordem. Todas as suas parcerias com o Passado tinham sido um desastre. Ele desprezava o colega, como se nada tivesse a ver com ele. Olhava para a frente, queria o inusitado. Sentia-se vaidoso com a capacidade de se fazer aguardar, de criar ansiedade em torno de suas reações e das surpresas que costumava preparar. Divertia-se ao surpreender o Presente com seu comportamento imprevisível, mas estabelecia com ele um bom relacionamento. O fato é que o Presente era, no final das contas, quem verdadeiramente o acolhia em qualquer situação.

Temperamento tranqüilo, tinha o Passado. Sempre com suas obrigações em dia, finalizadas, não aceitava mudanças. Era emotivo e muito suscetível a críticas. Quando as pessoas se referiam a ele com desprezo, sentia-se desvalorizado e costumava chorar. Vivia com saudade, muitas vezes sem saber sequer definir a razão. Como o Futuro o tratava com distanciamento, ele foi se apegando ao Presente e fez dele um grande amigo. Onde o Presente ia era certo encontrar o Passado junto. Era conselheiro do Presente, que antes de tomar qualquer atitude drástica, consultava o amigo mais experiente.

O mais dinâmico de todos, sem dúvida, era o Presente. Chegava de um jeito tão sorrateiro que ninguém percebia e, logo a seguir, se ausentava. Sua maior virtude era a capacidade de renovar-se constantemente, de forma, por assim dizer, camaleônica. Poucos acompanhavam sua velocidade e pobre de quem se apegasse a ele. Era fugaz, não se prendia a nada nem a ninguém. Apenas existia, oferecendo sua sedutora companhia a quem quisesse e soubesse aproveitar. Após o efêmero instante, somente um ser no universo poderia compreendê-lo: seu amigo, o Passado.

Todos a postos, o Senhor do Tempo explicou que no planeta Terra as pessoas estavam correndo demais. Tinha reunido os três naquela sala porque precisava ouvi-los sobre esse fenômeno, já que Passado, Presente e Futuro confundiam-se neste momento entre os homens, devido à imensa velocidade em que viviam.

O Passado explicou que fez a sua parte, registrando na memória dos terrestres as conseqüências desastrosas desse comportamento. Mas, no planeta azul, a sinceridade nem sempre era bem vista. Como o Passado não sabia mentir, percebia que muitas vezes preferiam não ouvi-lo. Ponderou também que a qualidade de suas lembranças dependia do que o Presente conseguisse produzir. Melancólico, permaneceu à disposição da humanidade para consultas e conselhos.

O Presente confessou que sua auto-estima andava meio baixa. Ao final de cada dia, tinha a sensação de que ninguém na Terra lhe tinha dado atenção. Frustrado, alegava que os humanos mal olhavam para ele, e já estavam pensando no Futuro. Ele tinha deixado de ser o foco e assim ficava muito difícil construir o hoje. O amigo Passado tinha bons motivos para estar preocupado, mas ele também vinha passando maus bocados.

O Futuro admitiu temer pela própria sorte. Já não era olhado com a mesma confiança de antes e era um traço da sua personalidade necessitar permanentemente de que acreditassem nele. Alimentava-se de planos e projetos, mas para isso todos precisavam permanecer dispostos a sonhar. E sonhar, apesar de urgente, não pode ser com pressa. Era assustador imaginar que, pouco a pouco, poderia deixar de existir naquele planeta. A situação também não estava sendo fácil para ele.

O Senhor do Tempo percebeu que Passado, Presente e Futuro estavam cumprindo cada um o seu papel, segundo a lei da vida e, sendo assim, procurou tranqüilizá-los. Prosseguiam sucedendo-se em marcha inexorável, independente das vontades e dos humores. Organizavam fatos e sentimentos, temperando-os com experiência, transitoriedade e incerteza e isso jamais terminaria. Vendo-os sair, um a um, desejou que o universo compreendesse o tempo, em suas nuances, com a sua verdadeira e única vocação: seguir em frente e nada mais.

Meu Tio Zeca

Por Therezinha Mello
Meu tio Zeca era um tipo curioso. Conservou, pela vida inteira, o vestuário clássico da primeira metade do século passado. Cores sóbrias, sapatos de cadarço, paletó e o indispensável chapéu, de feltro ou de palhinha, compunham seu traje habitual. Nunca se casou e, quando o conheci, já a família o havia estereotipado como um solteirão convicto.

Era metódico e esse era um traço de sua personalidade. A absoluta solidão em que vivia acentuou essa tendência e o fez colecionar uma série de esquisitices. Hoje, acredito que sua principal característica era a dificuldade imensa de mudar. Mantinha com convicção hábitos antigos, repetia velhos bordões e criava rotinas pelo prazer de segui-las e com elas se comprometer fielmente.

No início de cada ano letivo recebia dele uma coleção lápis novinhos em folha, com a propaganda da antiga loja de ferragens que costumava freqüentar. No Natal, ele me passava, num movimento discreto, uma ou duas cédulas estalando de novas, para que comprasse um presente. Quando passei para o ginásio, ganhei dele uma caneta tinteiro cor de vinho que exibia como um troféu. Eram manifestações de carinho que fazia a seu jeito e que me ficaram, definitivas, na memória.

Sempre morou sozinho e não tinha o hábito de receber visitas. Semanalmente ele nos procurava para “saber das novidades”, como costumava dizer e, eventualmente, ficava para almoçar. Não gostava de aceitar convites de última hora. Era como se não pudesse quebrar uma programação pré-estabelecida, como se o dia não devesse ter imprevistos. Despedia-se dizendo sempre a mesma frase:

“- Vou andar! Até mais, minha gente!”

E seguia solitário, a vagar pela vida. Lembrava o mito de Sísifo, que diariamente cumpria um trabalho árduo, levando uma pedra ao alto da montanha, para depois vê-la rolar de volta à origem e ter de recomeçar a tarefa no dia seguinte.

Quando chegava algum parente nosso do nordeste, era ele quem aguardava na rodoviária ou no aeroporto. Acordava mais cedo, chegava com antecedência e trazia o visitante com satisfação até a nossa casa. Nesses períodos vinha nos ver com mais freqüência. Demorava mais, conversava muito e, nos dias quentes, tomava sucos e água gelada, comentando:

“- Ô que beleza de água! Bem gelada!”

Os sobrinhos riam e aquele convívio nos deixava contentes por vê-lo sendo capaz de momentos de maior espontaneidade e, sobretudo, de mais alegria. Sempre me perguntava o que o teria feito tão sozinho no mundo. Era como se ele tivesse interrompido a seqüência normal da vida e escolhido sua própria forma de continuar. Com valores e costumes particulares, convivendo com lacunas que não sabia preencher, projetando-se num mesmo filme inúmeras vezes, onde faltavam atores e o roteiro era incompleto.

Quando eu tinha os meus dezoito anos, tio Zeca teve um problema cardíaco e morreu poucos dias depois. Encontramos em sua carteira de documentos uma foto antiga e já bem desgastada. Era de uma jovem de traços finos e sorriso discreto. No verso uma dedicatória apaixonada redigida em 1932. Era Isabel. Soubemos que havia sido noiva de meu tio, sua única e verdadeira paixão na vida. Nada teve o poder de apagar aquela ausência e finalmente entendi que, desde os idos anos trinta, meu tio Zeca deve ter ficado se perguntando, de rotina em rotina, por que cargas d’água ainda permanecia neste mundo.

Ser Palito na Vida

Por Therezinha Mello
A ingratidão humana não poupou a nossa classe dos palitos. Na saúde bucal somos hoje considerados inadequados e perdemos, pouco a pouco, a honrosa finalidade profilática. Os profissionais de odontologia desaconselham nosso uso, enxovalhando-nos de forma impiedosa. A discriminação é tão grande que os restaurantes só podem nos oferecer se hermeticamente fechados e em embalagens individuais. Definitivamente tornamo-nos “personas non gratas” para a maior parte da sociedade.

Felizmente ainda somos indispensáveis à mesa de alguns adeptos mais fiéis, que preservam o velho hábito de tatear o paliteiro, pinçando-nos ao acaso. Permanecemos boas companhias em sestas prolongadas, quando acabamos pendendo frouxamente dos lábios de glutões adormecidos. Os mais discretos procuram camuflar nossa atuação. Mantêm uma das mãos escondendo a outra que, com o nosso auxílio, investiga-lhes nos dentes as frestas de difícil acesso. Nesses casos, nossa utilidade é reconhecida, mas o hábito de usar-nos, julgado de elegância absolutamente duvidosa.

É claro que precisamos ficar visíveis, mas essa disponibilidade torna-se, em alguns momentos, uma espécie de “osso de ofício”. Os ansiosos, por nos perceberem literalmente ao alcance das mãos nas mesas de bar, extravasam suas angústias fazendo-nos em pedacinhos sem nenhum motivo aparente, num passatempo banal. Ao quebrar-nos, já não sabem mais o que fazer conosco. Desprezam-nos simplesmente no cinzeiro mais próximo atribuindo-nos, sem perceberem, uma nova finalidade. Valemos nesses momentos por um tranqüilizante, um lamento, um cigarro, um desabafo qualquer.

Nosso bilateral formato pontiagudo e a capacidade criativa dos usuários impingiram-nos a incômoda função de espetar o que quer que encontremos pela frente. Nas recepções, as azeitonas rechonchudas aguardam nossa intervenção para serem abocanhadas pelos convidados. Cubos de queijos e batatinhas só podem cumprir o papel de acompanhar o chopp gelado, se estivermos a postos, prontos para fisgá-los um a um.

As crianças gostam de brincar conosco, construindo casas e barcos, vendo em nós as retas dessas construções. Algumas descobrem que podemos nos transformar em bonecos, muito simples e magricelos. Espécies modestas de Pinóquios, nas mãos de pequenos Gepettos sorridentes e orgulhosos de suas criações.

Nas festas de aniversário temos um momento triunfal muito aguardado, quando caprichamos na espetadela e provocamos um grande “bum” que assusta os adultos e alegra os pequenos. A seguir fazemos chover brinquedos miúdos, que brotam de um grande balão colorido pendurado no teto. As crianças correm atarantadas procurando seus prêmios no chão. Passado o momento mágico, somos invariavelmente esquecidos num lugar qualquer. Mas isso não importa. Compreendemos as ingratidões porque sabemos que, o sentido de nossa existência, consiste em estarmos sempre por perto, sem jamais nos fazermos notar.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Meu Primeiro Amor

Ele chegou na minha vida de uma forma inesperada. Sempre o desejei. Mas era tudo tão difícil. Será que ainda poderia conquistá-lo com essa idade? Sonhava com ele desde os meus 18 anos. Só aconteceu aos 39. Era uma mistura de prazer e medo. Nem sabia como me deixar levar por ele. Deixava-o num canto parado. E pensava: “Como vamos sair juntos?”. Depois de tanta luta. Tanta ousadia. Não poderia fazer dele um brinquedo. Teria que assumi-lo a qualquer custo.

Nós nos encontramos por acaso. Por um capricho do destino. Traída e deprimida, não queria ficar sofrendo. Resolvi sair da fossa presenteando a mim mesma. Fui até uma loja a procura de um mimo. Precisava ser feliz outra vez. Não que um objeto pudesse substituir uma pessoa. Apenas pretendia ser a dona da própria felicidade. Sem depender de ninguém para isso. Então segui em frente. E dei de cara com ele. Lindo. Fiquei paralisada. O vendedor me disse que estava sozinho.

Aproveitei para saber tudo a seu respeito. Como era? O que fazia? Valia à pena ficar com ele? As pessoas ali o conheciam. Sabiam como deveria me comportar para tê-lo junto a mim. Foi amor à primeira vista. E meu coração dizia que ele já era meu. Segui adiante sem pensar no depois. Não importava o quanto me custaria para ficar ao seu lado. Qualquer sacrifício valeria a pena desde que fosse meu companheiro. Do jeito que se exibia. Era um fato. Ele também me queria.

Fiz amizade com as pessoas daquele lugar para voltar a vê-lo mais vezes. E apesar de toda minha paixão não me precipitei. Fui me aproximando devagar até tomar a decisão. Ele me seduzia. Me encantava. Era novinho e cheiroso. E queria compromisso. A coisa foi ficando séria. Então não resisti. Levei-o para casa e me entreguei de corpo e alma. Nem preciso dizer o que aconteceu depois. Mudei para melhor e todos notaram. Já se passaram dois anos e meio. E vivemos muito bem, obrigada.

Como nada é perfeito tivemos alguns desencontros. Minha ansiedade causou danos. Feri meu querido. Por um período ficaram as marcas. Até que consegui apaga-las. Isso aconteceu porque ele não me escutava. Parava no meio da rua quando eu estava estressada. Queria mostrar que estava errada. Foi doloroso aprender a lidar com ele. Demorei a me sentir segura. E isso era fundamental para alcançarmos o que temos hoje. Muito carinho e cumplicidade. Eu o chamo de meu bebe. Mas é ele quem me carrega no colo. Meu primeiro e inesquecível carro.
Rosária Farage

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Palito Apaixonado

Por Ana Lúcia Prôa
Ela se sentou diante da penteadeira e ficou admirando-se ao espelho por alguns instantes. Era linda! Pele alvíssima, cabelos longos de um preto jamais visto por aquelas terras. Passou a escova de pêlos por entre os fios mansamente. No rosto, aplicou um pó que deixou a face ainda mais branca. Tingiu a boca de carmim e desenhou o canto dos olhos com tinta preta, salientando seu formato oriental.
Eu olhava tudo com veneração. Pousado sobre a penteadeira. Aquele era um ritual que ela seguia todas as manhãs. Mas, não sei bem explicar o porquê, hoje sua aura, seu olhar, seus gestos estavam diferentes, indicando que algo novo estava para acontecer. Com suas mãos finas e delicadas, ela uniu e torceu seus espessos e lisos cabelos com habilidade, resumindo-os a um grande coque no alto da cabeça. Foi então que entrei em cena: comprido, liso, pontiagudo, adornado por desenhos de extrema delicadeza. E ela me transpassou pelo volumoso coque. Com maestria, eu prendi aqueles cabelos que tanto admirava. Podia sentir seu volume, peso, perfume.
Ela deixou seus aposentos com passos rápidos, mas leves, para não ser percebida. Entrou na carruagem e partiu pelas ruas ainda toscas de uma Paris que não existe mais. Para onde estaria indo? Eu não me agüentava de curiosidade, embora pouco pudesse observar da posição em que me encontrava.
Ela desceu da carruagem. Deslizou para dentro de uma casa bonita, mas sem o luxo de onde morava já há alguns anos com seu pai, nobre oriental a serviço em terras européias. Lá dentro, vi que um homem a esperava. Cabelos tão louros, quase brancos, que destoavam dos fios negros que eu sustentava. Num abraço, aqueles fios desbotados encostaram-se em mim e pude sentir como eram diferentes. Masculinos, brutos, sem perfume.
Percebia que os dois não se desgrudavam. Até quando duraria aquele abraço? A cabeça dela pendia de um lado para o outro, ao sabor de um beijo demorado. Sem pressa, ele a guiou pelas escadas. Abriu uma porta, onde havia uma grande cama emoldurada por filós. Gentilmente, conduziu-a para dentro dos filós e, sentados, pude novamente sentir aquele balanço gostoso: pra lá, pra cá, pra lá, pra cá... Eu dançava preso aos fios negros mais cheirosos que já pude sentir.
De repente, uma mão grossa, com dedos largos, puxou-me asperamente de dentro do coque. Assim como a força do vento empurra as folhas árvore abaixo, os longos fios negros penderam por sobre sua pele de mulher, agora nua. E eu caí por sobre lençóis macios. Mas não tão macios quanto aqueles cabelos.
Permaneci ali, inerte, observando a mistura do negro e do louro, da pele alvíssima com a tez morena de sol.
Horas mais tarde, tornei a prender o coque que tanto amava. Voltamos para casa. E, ao cair da noite, retomei meu posto na penteadeira. Sedento para que o dia seguinte logo chegasse e eu pudesse retornar para o perfume daqueles fios negros e espessos. Antes intocados. Agora descobertos. Mas ainda tão dependentes de mim.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Nem choro, nem vela!

Por Rachel Bassan

Se você tivesse que optar, o que escolheria? Um amigo para as horas muito difíceis ou para um chopinho de comemoração, uma taça de champagne para uma super celebração de uma vitória alcançada? Aposto que falou pra horas difíceis. Pois deixe de ser bobo. Resguarde-se e abra os olhos. Minha estatística particular e de observação livre me garante que, infelizmente, os amigos curtem a sua desgraça e invejam o seu sucesso. Isto trocado em miúdos quer dizer que você vai ter muitos, inúmeros amigos ao seu lado para lhe consolar na hora do câncer e da desgraça e possivelmente um punhado de dois ou três para celebrar o seu sucesso verdadeiramente. Você acha que eu estou falando droga? Coisa nenhuma! O ser humano é assim mesmo. Não agüenta ver genuinamente ninguém feliz. Aposto que nem você. E não vá me dizendo que você não é assim. Todo mundo é! Faz parte da condição humana. O que varia é o grau de consciência que se tem deste sentimento horroroso porém humano. Quando a gente entende essa sensação, trabalha-se emocionalmente esta questão e transformamos este sentimento ruim em positivo. É muito interessante como a coisa funciona. Quando você está no fundo do poço, quando tudo parece que deu errado e não tem mais pra onde cair, tem um montão de gente te apoiando, sendo solidário de verdade. É, pode acreditar, é de verdade mesmo, pois isto traz tanto prazer que a criatura está lá verdadeiramente pra te apoiar. Agora... isto sim, é complicado - imagine que você recebeu uma importante promoção no trabalho, ou conseguiu trocar de carro para um modelo fantástico, ou mudou para uma casa maravilhosa. Aí, meu caro leitor, se prepare. Eu posso afiançar que até perder amigo você vai sem ter tido qualquer culpa no cartório. Pelo simples motivo que você “ousou” ter mais do que lhe era “permitido”. Tem gente que usa até sal grosso e figa da Bahia para se proteger. Já vi de tudo um pouco. Mas, o que realmente funciona é... não sei! O que se pode fazer é pensar a respeito, mergulhar dentro de si sem censura e defrontar-se com o diabinho que se esconde lá dentro e transforma-lo num ser mais amável e mais humano. Está na hora da gente começar a mudar a partir da gente. Poder fazer verdadeiramente pelo outro o que espera que os outros façam por nós. Poder curtir, compartilhar, vibrar. Eu bem que troco os meus amigos de desgraça por amigos que me ajudem a driblar muita bolinha de champagne.
E você - não?

O Plano Perfeito

Por Carlos Eduardo Novaes

O que pouca gente sabe é que tudo obedeceu a um plano traçado e executado à perfeição. Tem algum tempo que um grupo de senadores – 40 para ser preciso – com inveja do espaço que a imprensa dedicava à Câmara dos Deputados – por razões obvias – resolveu reagir para tirar o Senado das sombras.
- Precisamos fazer alguma coisa! – berrou o líder em uma das reuniões – Ninguém fala do Senado. Só quando morre um senador. Daqui a pouco ninguém saberá que o Senado existe!
O grupo se reunia nas madrugadas de Brasília à procura de um bom motivo que pudesse levar o Senado de volta às manchetes. Não era uma tarefa fácil: os senadores, como membros da Câmara Alta, sempre primaram pela discrição e pelo respeito às normas constitucionais. Uma noite, há quase cinco meses, já estavam quase desistindo do plano quando foram surpreendidos por um colega entrando esbaforido:
- Pegaram o Renan Calheiros em um escândalo. A noticia sai amanhã na imprensa!!
- O Renan??? – berrou o líder levantando-se – O Presidente do Senado? Do nosso Senado? Não acredito!
- Taí o que procurávamos! – exultou um colega – Deus ouviu nossas preces!
- Conta!Conta! – pediram todos ao colega que acabara de chegar
O recém-chegado detalhou os pormenores da matéria da revista e todos se abraçaram felizes.
- Amanhã o Senado volta às manchetes – disse um deles erguendo uma taça de vinho
- Sim – comentou um mais ponderado – mas precisamos pedir ao Renan para não renunciar depois de amanhã ou passaremos como um cometa pelas manchetes!
Os 40 senadores foram dizer ao Renan para resistir e não abrir mão do cargo. Amarrar-se na cadeira da Presidência se for preciso, pediu um colega. Renan repetiu o Fico de Pedro I, mas solicitou que os senadores fizessem sua parte para ajudar a manter acesa a chama do Senado. Foram noites intermináveis de reuniões e discussões na busca da melhor estratégia para o dia do julgamento.
- Vamos abrir a sessão para o público?
- Negativo – rebarbou o líder
- Sessão secreta é inconstitucional!
- Por isso mesmo! Se for uma sessão igual às outras é capaz de só sair uma notinha. É isso que você quer?
- Mas o Senado é uma casa do povo brasileiro. É ele que nos sustenta com suas contribuições!
- Mais uma razão para deixá-lo de fora. Já pensou? O Senado talvez ganhe até um Caderno Especial.
Alguém lembrou que uns deputados haviam ganhado uma liminar do STF e iriam assistir ao julgamento.
- Já falei com nossos seguranças. Vamos enchê-los de porrada. Isso vai nos garantir umas boas fotos na primeira página.
- Você não acha que estamos indo longe demais?
- Veja! Essa é a grande oportunidade do Senado de ficar conhecido até no exterior. Não podemos perdê-la.
- Só mais um detalhe. Vamos gravar e taquigrafar a sessão?
- Bem que eu gostaria, para que meus netos soubessem do que fomos capazes. Acontece que é isso que eles esperam que a gente faça. Não gravar nem taquigrafar sempre pode render mais uma manchete.
Na manhã da quarta-feira 12 de setembro os 40 senadores chegaram à Casa dispostos a – como haviam combinado – se unir à oposição e condenar Renan Calheiros, na certeza de uma estrondosa repercussão que botaria o Senado em todas as mídias. Pouco antes do inicio da votação, porem, o líder do grupo convocou uma reunião de emergência no banheiro e anunciou uma mudança nos planos:
- Vamos votar a favor do Renan!
- Você não disse que era melhor cassá-lo?
- Esqueci de um detalhe: tem três representações contra ele aqui no Senado. Se for cassado agora, entrará outro presidente e ninguém se interessará mais nem pelo Renan nem pelo nosso Senado.
- Valeu, chefe! Vamos continuar fazendo as coisas como NÃO devem ser feitas.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Um feliz ‘Feliz Aniversário’

Por Ana Lúcia Prôa

Vinte e quatro de fevereiro de 2057. Sopro as velinhas que registram a minha nova idade: 88 anos. Sinto-me ótima! Jamais poderia imaginar que envelhecer fosse tão bom assim. Tenho à minha volta, além da minha família, a maioria dos meus amigos de juventude. Todos exibem a mesma fisionomia feliz que a minha. Somos saudáveis e ativos, e ainda temos uma longa estrada a percorrer pela frente. Agora que a expectativa de vida no Brasil beira os 130 anos, nos sentimos na flor da idade!
Lembro com pesar de minha mãe, no início do século XXI, que possuía uma caixa cheia de remédios. Mais ou menos 15 para tomar diariamente, que cuidavam de seu coração, de sua pressão, de seu estado emocional, de suas articulações, de sua memória e por aí vai. Lembro também de minha mãe andando pelas ruas com passos desequilibrados, enxergando mal e sentindo a maior dificuldade para subir uma simples calçada! E olha que ela tinha 70 anos... Uma garotinha em comparação à minha idade atual. Mas agora, graças aos avanços da Medicina, envelhecer se tornou um fardo levíssimo de se carregar.
A primeira descoberta que os cientistas fizeram foi a de que a mente era a responsável por tudo o que nos acontecia. Então, trataram de desenvolver um chip que, uma vez implantado sutilmente sob a pele, envia comandos de positividade para o cérebro. Assim, à medida que as pessoas vão envelhecendo, sentem-se felizes, e não tristes, por verem sua pele enrugando, seus cabelos encanecendo. E esse estado de ânimo positivo faz com que seus organismos permaneçam saudáveis. Nada de diabetes, nada de artrite e artrose, nada de osteoporose, nada de catarata! Ainda assim, para aqueles idosos mais resistentes aos efeitos do chip, pesquisadores desenvolveram uma única pílula – sim, uma única pílula! – capaz de prevenir e curar todos esses males comuns a quem envelhece.
O aumento da expectativa de vida também se deveu a outros fatores: à descoberta da cura do câncer e da Aids, ao controle da epidemia de obesidade, à diminuição vertiginosa da violência, ao aumento impressionante da direção consciente e, acima de tudo, ao freio que os cientistas conseguiram exercer sobre os efeitos catastróficos que o aquecimento global estava prestes a ocasionar. Numa ação conjunta com 100% da humanidade, diversas medidas foram tomadas para evitar a emissão de gases poluentes e para conter o desmatamento. A campanha dos governos de todos os países foi tão eficaz que teve adesão plena. E, para culminar, os cientistas conseguiram desenvolver uma tecnologia que recompôs os buracos na camada de ozônio.
Ah, se minha mãe ainda estivesse viva para ver tudo isso... Para participar de minha festa... O dia está lindo, com temperatura muito agradável, como é comum naquele ano de 2057. E eu ali, cercada por meus amigos, meu marido, minhas filhas, meus netos e até um bisnetinho de colo, ouvia o Parabéns Pra Você muito orgulhosa, por poder estar participando de um Brasil melhor, de um mundo melhor. Ao soprar as velinhas, fiz o pedido:
“Que eu ainda viva muitos anos para curtir tanta felicidade com saúde, alto astral, bem-estar, sensação de segurança e liberdade como sinto agora, nos meus 88 anos!”
Em 2057, este pedido será facilmente atendido.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Entrevista com Cristo Redentor

Regina Paranhos & Fabio Bastos

Entrevista concedida para a repórter Regina Paranhos pela estátua do Cristo Redentor após ter sido escolhido uma das 7 maravilhas do mundo moderno.

RP - Como devo lhe tratar? Senhor, por ser o Cristo Redentor ou senhora, por ser estátua?
CR – Você deve me tratar de senhor e com todo o respeito porque agora que eu sou uma celebridade; sou uma das 7 maravilhas do mundo moderno. E vamos acabar com essa história de estátua porque eu sou um MO NU MEN TO. Estátuas são aquelas que ficam em praças públicas servindo de banheiro pra pombos.

RP — Como e quando o senhor subiu aí em cima do Corcovado?
CR — Já faz tempo que estou aqui. Eu fui concebido por um engenheiro brasileiro lá pelos idos de 1920. Minha construção ficou a cargo de um francês e demorou uns cinco anos pra terminar. Fui inaugurado em 1931 e minhas luzes acesas pelo cientista italiano Marconi diretamente de Nápoles. Pode-se dizer que sou um monumento multinacional. Peso mais de 1000 toneladas bem distribuídas nos meus 30 metros de altura.

RP — É dura a vida de estátua? Essa posição, braços abertos sobre a Guanabara, não cansa?
CR — Essa posição, imortalizada em música do Tom Jobim, é símbolo da cidade e eu tenho que manter de qualquer maneira. São os ossos do ofício, mas eu já estou acostumado. Apesar da minha idade, eu sou duro como uma rocha.

RP — O senhor faz uso de desodorante?
CR — Nunca usei e até hoje ninguém reclamou. O pessoal daqui de baixo do Jardim Botânico até criou um bloco em homenagem ao meu sovaco.

RP — Como é a vista aí de cima?
CR — Eu não me canso de apreciar essa paisagem maravilhosa, não há nada igual no mundo. Nesse tempo que estou aqui assisti muita coisa. Vi construírem a ponte Rio - Niterói, o Maracanã, o Aterro do Flamengo. É bem verdade que vi também algumas coisas ruins como a favelização da cidade. Gosto também de ver turistas chegarem aqui em cima esbaforidos e tirarem fotos de mim. Quando não tem ninguém é chato e pra passar o tempo eu fico contando barcos na baía de Guanabara e as viagens do bondinho do Pão de Açúcar.

RP — É verdade que a sua eleição como uma das sete maravilhas do mundo foi marmelada?
CR — Isso é choro de perdedor, de invejosos. Se você quer saber, eu acho até que fui prejudicado e merecia uma colocação melhor. Perder para a Muralha da China ainda vai, mas ficar atrás de uma cidade de pedra que ninguém nunca ouviu falar é dose. Eu sei que a Estátua da Liberdade foi uma que reclamou, mas, coitada, ela está caidinha, virou até garota propaganda de um shopping na Barra da Tijuca.

RP — Após a eleição, quais são seus planos?
CR — Eu gostaria que fizessem um pedestal rotatório para que eu possa girar e ver toda a cidade. Estou há mais de 70 anos na mesma posição e acordando todo dia com o sol na cara. E tem mais uma coisa, daqui pra frente eu quero ser conhecido como o Monumento do Cristo Maravilha.