quarta-feira, 30 de julho de 2008

Um por Todos, Todos por Um

Therezinha Mello

A casa de Alberto era uma festa constante. A família, tão grande quanto a quantidade de amigos e agregados, que sempre andava por lá. Ele havia mudado há pouco tempo e a bela residência, com dois pavimentos, comportava o entra e sai constante. Naquela tarde estávamos na piscina, enfrentando o verão do Rio sem preocupação e com muita cerveja.

Salvador, o velho caseiro, ficava por ali limpando o jardim, fazendo pequenos consertos e, como era sua especialidade, contando histórias e nos divertindo com seu jeito simples de falar da vida. Era um sujeito negro, com a voz forte e muito grave. Ria uma gargalhada estrondosa, que costumava assustar crianças desavisadas.

Os quartos situavam-se na parte superior da casa e, num deles em especial, estavam Julinha e a babá Maristela. Era a caçula, com quem Sonia e Alberto já não contavam, e que tinha pouco mais de três meses. Maristela havia chegado na véspera de uma pequena cidade do interior e era visivelmente tímida, tendo cumprimentado a todos rapidamente, sem encarar nenhum de nós.

Convenhamos que, num esplêndido dia de sol como aquele, conversa foi, conversa veio e esquecemos completamente de Maristela, Julinha e do velho Salvador. Preferimos a cerveja, o churrasquinho, as piadas, a política e o que mais pudesse temperar aquelas horas. Íamos já pelas cinco da tarde, quando ouvimos um grito de terror vindo do interior da casa.

Atordoados levantamo-nos, todos, como um exército atendendo a um comando repentino. Ouvíamos uma voz feminina, que gritava e chorava, em desespero. Era Maristela.

“- A menina, D. Sonia! A menina! Roubaram a Julinha! Ai meu Deus!”

Alberto tentava acalmar Sonia:

“- Calma , meu amor, calma! “

E Sonia, já histérica, encaminhava-se para a escada:

“- Vamos subir! Tem ladrão aqui Alberto! Roubaram minha filha!”

Eu e Salvador, não discutimos. Armamo-nos, cada um, com um pedaço de pau e subimos, dispostos a matar se preciso fosse, para salvarmos Julinha e tirarmos Alberto e Sonia daquela dificuldade. Uma súbita coragem tomou conta de nós. Não sei pelo Salvador mas, por mim, posso garantir que as cervejas ajudaram bastante.

Quando chegamos ao quarto de Julinha, demos com Maristela pálida, em estado de choque, apontando para o berço vazio. Sonia desmaiou e Alberto tentava reanimá-la com pequenos tapinhas no rosto. Os filhos, ainda molhados da piscina, ensopavam o chão do quarto e queriam saber o que estava acontecendo.

“-Tragam água para sua mãe. Rápido, rápido!”, gritava Alberto. A nós ele determinava que procurássemos pela casa, que achássemos o ladrão. Ele queria sua filha de volta.

Nesse instante, abriu-se a porta do quarto ao lado e dele saiu D. Rosária, a esposa de Salvador, uma negra gorda e bonachona. Trazia Julinha no colo e, com os olhos arregalados, perguntava que gritaria era aquela. Sonia foi aos poucos recobrando os sentidos e abraçou-se chorando com a filha que arrancou dos braços de D. Rosária.

Salvador perguntou à mulher o que tinha acontecido. Ela explicou que Julinha estava chorando no berço e Maristela dormia a sono solto na pequena bergère do quarto da criança. Cansada da viagem, o sono profundo a impediu de peceber que D. Rosária entrou no quarto e levou Julinha para o cômodo ao lado.

Já refeitos, começamos a descer as escadas, dispostos a retomar nossos lugares na piscina, agora com assunto para o resto do dia. De repente estremecemos, predispostos a novo susto, e voltamos bruscamente nossos olhares para o alto. Era Salvador, às gargalhadas, rindo do feito de D.Rosária e do nosso exagerado sobressalto. A casa tremeu mais uma vez.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

A mulher que não virava a página

Therezinha Mello


Cristina prefere viver assim, considerando o presente uma inutilidade e olhando fixamente o passado, como se ele fosse um casaco de peles na vitrine da Casa Canadá. No discurso, abusa dos Pretéritos, por achá-los portadores dos bons tempos. Perfeito, Mais que Perfeito, ou até Imperfeito, são capazes de trazer de volta, com correção e elegância, o que preserva na memória com o cuidado de um colecionador de cristais. Alimenta a própria vida com o ressoar do que já não é mais, como se dos seus setenta anos, apenas parte deles tivesse de fato valido a pena.

Carioca, mora no bairro do Flamengo, onde nasceu. A juventude passou realizando o sonho de ser aeromoça. Em 1958, quando tinha vinte anos, conheceu Roberto, nas famosas “asas da Panair”. Era o seu primeiro vôo no Constellation e ainda hoje é capaz de reproduzir mentalmente, cada palavra do diálogo que tiveram. Sente prazer em dedicar-se a essa divagação, especialmente quando seus olhos assistem da janela, as decolagens do Aeroporto Santos Dumont. Possivelmente, conferiu à expressão “terra firme” um novo significado, depois que casou com Roberto, dois anos depois de conhecê-lo.

Cristina continuou trabalhando, depois de casada, o que não era comum naqueles anos dourados. Amou Roberto profundamente, e nunca trabalhou tanto como depois de, aos quarenta e cinco anos, ele morrer, de um minuto para o outro, vítima de um ataque cardíaco. Passados os primeiros dias, resolvidas as questões mais práticas, deixou as crianças com sua mãe e só ansiava por voar. Muitas vezes, desejou explodir naquele céu azul e nunca mais pousar. Aliás, ela acha mesmo que nunca mais pousou. Que permaneceu pelos céus buscando Roberto e repetindo, compulsivamente, o diálogo que tinha mudado sua vida.

Mantém o corpo esguio, apesar da ingratidão com que os hormônios costumam tratar as mulheres que desabrocham, eternas, para os quarenta anos. Os cabelos suavemente grisalhos mostram que o tempo recusa-se a devastá-la. Antes sopra-lhe com suavidade seus ecos, como uma brisa de outono, desenhando-lhe mechas elegantes de um branco discreto. Veste-se com beleza e discrição. Se já não pode recorrer aos antigos figurinos que guarda, empilhados, no quarto de quinquilharias, mantém-se fiel a algumas casas mais clássicas. Lojas especializadas, que lhe vendem o que seria a moda atualizada da revista A Cigarra, como um toque nostálgico que a deixa feliz.

E foi assim que Cristina foi surpreendida ao acomodar-se à mesa em um restaurante, no último domingo. O filho a havia chamado para o almoço e ela encontrou-se com ele depois de estacionar o carro. Esse também era um velho hábito. Cristina foi uma das primeiras mulheres cariocas a dirigir um automóvel. Depois de beijar os netos e abraçar o filho que, em tudo, lhe lembrava Roberto, percebeu que na mesa em frente estava Adalgiza Colombo, a miss Distrito Federal de 1958. Linda e delicada sorriu para Cristina ao perceber sua admiração.

Ela olhou em volta e constatou, talvez pela primeira vez na vida, que o tempo tinha passado. Abriu o cardápio e procurou não pensar nisso. Precisava de uma bebida forte. Olhou os netos com carinho e sorriu, enquanto o velho diálogo começou seu desfilar patético mais uma vez, sem que ela pudesse mudar seu curso teimoso e determinado. De novo a antiga página que não conseguia virar, apesar de todas as evidências. Pensou que seria melhor escolher o prato e esquecer a mesa em frente, imaginando que o presente era mesmo uma inutilidade.