quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Ao Leitor

Therezinha Mello

Brás Cubas, meu caro defunto autor, sou uma de suas leitoras. Uma “alma sensível”, se prefere assim. Vá lá! Chove há dias no Rio de Janeiro. O mau tempo me fez lembrar a “chuvinha triste e constante” do dia de sua morte. Acabei aqui, mergulhada na “bergère” da sala, com uma bela edição das “Memórias Póstumas” nas mãos. Este, sempre será para mim um exemplar único. Mas, saiba, custou-me bem mais que os duzentos réis que você previu. Posso me considerar uma “bibliômana”. Como naquele capítulo quase suprimido: o setenta e dois. E ponho-me a folheá-lo bem do jeito que você imaginou: “devagar, com amor, aos goles...”.

Esbarrei na sua dedicatória ao verme. Àquele que primeiro lhe roesse “as frias carnes” do cadáver. Nada mau para quem decidiu começar as memórias, não pelo princípio, mas pelo fim. Você confessou seu especial gosto pelos epitáfios. Eu admito um particular fascínio por dedicatórias. Tanto assim que, na página seguinte, outra me seduziu imediatamente: é dirigida “Ao Leitor”. Senti-me contemplada. E estou à vontade para lhe dizer que dispensei o piparote. Pague-se da tarefa, porque a obra me agrada. E muito. Talvez eu não esteja entre os seus finos leitores. Conformo-me de estar entre os fiéis. Entre os fiéis e críticos. Pronto. Estaria certamente entre os cinco, se os seus temores tivessem fundamento: “se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito dez. Dez? Talvez cinco.”.

A expectativa em relação aos leitores é um sentimento comum no escritor. Mas sua conta chegou a cinco! Modéstia? Ironia? Ou seria a “sede da nomeada”? Eu acho que você queria o “amor da glória”. Sim senhor! Já imaginava que, mesmo agora, um século depois, ainda teria muita gente se perguntando que idéia foi aquela de inventar um emplasto anti-hipocondríaco. Melhor ainda, o Emplasto Brás Cubas! E a certa altura me pede para decidir entre o seu tio cônego que defendia a “glória eterna” e outro, oficial, adepto do “amor da glória”. E me dá as costas, voltando ao emplasto! Pois não me interessaram os seus tios. Voltei ao emplasto junto com você. À idéia que fazia malabarismos no seu cérebro. Cabriolas.

Mas, devo lhe dizer. Eu fui, entre as que leram suas memórias, uma das que tremeram por Eugênia. Ela merecia melhor sorte. E o amava, com rara sinceridade. Mas, como são insensíveis os homens! Você teria se deixado ficar a vida inteira no Alto da Tijuca, não fosse a coitada “coxa de nascença”. Confesso que acreditei nas suas boas intenções enquanto você divagava: “Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?”. Bendisse aquela “borboleta preta” que lhe “adejava o cérebro”. Mas, cruel como todos, você desceu a Floresta da Tijuca deixando sua “Vênus Manca”. Ela que se entendesse com a idéia fixa de se casar com o jovem Brás, não é? Mas, para meu consolo, você também disse que não há nada suficientemente fixo neste mundo. E não há mesmo. Não há. Só não lhe chamei de cínico. Engano seu. Concordo quando diz que foi, apenas, homem. E os homens são assim. Insensíveis. Foi isso o que eu pensei. “Pela coxa de Diana!”. Você foi insensível.

Muito do que li em suas Memórias, só agora posso de fato compreender. É que hoje tenho sessenta e quatro anos “rijos e prósperos” como eram os seus, quando seguiu para o reino desconhecido de Hamlet. Delicio-me com a sensação que lhe o surpreendeu ao voltar da missa com Eulália, descendo o morro do Livramento. A companhia da jovem provocou-lhe a sensação de rejuvenescer. Começou a caminhada na maturidade, chegou jovem ao final da descida, “deixando aqui dois anos, ali quatro, logo adiante cinco”. Peguei-me a aprender com o amigo defunto, o segredo da vida eterna!

Quisera ser o “espírito profundo e penetrante” que você, generoso, me atribuiu já pelo final das memórias. Apenas procuro decifrar a vida. E aceitar o inesperado. Por isso acabamos nos entendendo tão bem, meu caro. Como imaginar que Virgília lá estaria a chorar a sua morte nos últimos instantes? “De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta”. E que, “do outro lado do mistério”, você ainda escreveria suas memórias para infinitamente mais que cem leitores ?

Suas palavras finais voltam-se para as “negativas”. De fato, acabam sendo, a esta altura da vida, em maior número do que gostaríamos. É certo que a soma dos anos observa-nos sorrateiramente. Não rejuvenescemos: “a rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes, nas sedas, - enfim, nos outros.”. Mas ficou-lhe, como saldo, não ter tido filhos. Não ter transmitido “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

Acomodo-me melhor na bergère, já pensando na miséria humana. E já começo a querer choramingar. Mas Quincas Borba, o nosso filósofo, veio em meu socorro: “- Que diacho!” “a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas.”. O conselho me valeu e muito. Fico com a “pena da galhofa”. Abandono a “tinta da melancolia” e as “rabugens de pessimismo”. Deixo os leitores graves e os frívolos. Fico entre os fiéis. Entre os fiéis e críticos. Pronto.

A Tela

Therezinha Mello

Tive medo de olhar meus próprios olhos na tela. Não choravam. Mas eu chorava. De medo. Desespero. Raiva. Minha angústia de estar viva, ali, estampada. Exigindo resposta urgente. Não podia apagar aquela imagem muda e ameaçadora. Terna e amiga. Braços alongavam-se na minha direção querendo me acolher. O sofá me engolia cada vez mais. Precisava atender ao chamado que não sabia de onde vinha. Ganhei aquele vermute vagabundo do porteiro da noite. Meu estômago doía muito de fome. A comida vinha de um caldeirão imenso. Eu me olhava esperando uma resposta. A vida era mesmo aquele amontoado de perguntas que eu não sabia responder. Quem ligou a TV? Na imagem estou mais jovem. Corte antigo. Louro acobreado. Pintei de louro só pra parecer com aquela cretina. Cabelos alteram a vida da gente. Roupinha feia essa que estou usando. E se desligasse a tomada? A empregada não veio. Tudo estava fora do lugar. Garrafa vazia. Ganhei aquele vermute vagabundo do porteiro da noite. Meu estômago doía de fome. Fugia pelo corredor, escuro e cheirando a mofo. Prédios velhos de Copacabana. Precisava sair dali rápido. Não podia comigo, me olhando o tempo todo. “- Olá Clark Kent!”. “- Tire os óculos!”. Ele tirou mesmo. “– Oi Super-Homem! Me leva daqui!”. Mas apareceu a Lois Lane. Aquela metida. E fiquei a pé na Avenida Rio Branco em dia de passeata. “– O povo. Unido. Jamais será vencido!”. Cinelândia tem telão. Chego afogueada tropeçando no povão. Unido. E vejo minha cara. Exigindo uma resposta. Tive medo de olhar meus próprios olhos na tela.

Estampas com Xadrez

Therezinha Mello

Quero a deselegância das cores descasadas.
E as estampas misturadas com xadrez.
Quero a graça inusitada que não liga pro mundo.
A escolha sem tendência. O tom que combinar com meu humor.

Quero a harmonia atrevida dos desencontros.
E o exagero que agradar meu coração.
Quero a reles pedra falsa e o romantismo das blusas de crochê.
O que não se usa mais. O que se passa adiante.

Quero os mistérios velados das peças esquecidas.
E a ousadia extravagante, fuleira, popular.
Quero arriscar o gosto duvidoso. A imitação barata. Os paetês.
O Lar Doce Lar. O Seja Bem Vindo dos tapetes.

Quero ouvir a canção do bêbado ao garçom do bar.
E a versão banal do sucesso americano.
Quero a flor de plástico.
A folhinha pendurada na parede.

Que encalhem os saldos das vitrines burguesas.
Quero a moda descartada. A coleção passada.
O chique da empregada.
O démodé que escolhi.

Libertem-se os anões pelos jardins !
Que lhes acompanhem Brancas de Neve de cerâmica ordinária. Sapos e cogumelos.
Que cascas de ovo arrematem as espadas de São Jorge.
E que os pingüins ocupem-se das geladeiras.

Quero a deselegância das cores descasadas.
E as estampas misturadas com xadrez.