Por Therezinha Mello
Meu tio Zeca era um tipo curioso. Conservou, pela vida inteira, o vestuário clássico da primeira metade do século passado. Cores sóbrias, sapatos de cadarço, paletó e o indispensável chapéu, de feltro ou de palhinha, compunham seu traje habitual. Nunca se casou e, quando o conheci, já a família o havia estereotipado como um solteirão convicto.
Era metódico e esse era um traço de sua personalidade. A absoluta solidão em que vivia acentuou essa tendência e o fez colecionar uma série de esquisitices. Hoje, acredito que sua principal característica era a dificuldade imensa de mudar. Mantinha com convicção hábitos antigos, repetia velhos bordões e criava rotinas pelo prazer de segui-las e com elas se comprometer fielmente.
No início de cada ano letivo recebia dele uma coleção lápis novinhos em folha, com a propaganda da antiga loja de ferragens que costumava freqüentar. No Natal, ele me passava, num movimento discreto, uma ou duas cédulas estalando de novas, para que comprasse um presente. Quando passei para o ginásio, ganhei dele uma caneta tinteiro cor de vinho que exibia como um troféu. Eram manifestações de carinho que fazia a seu jeito e que me ficaram, definitivas, na memória.
Sempre morou sozinho e não tinha o hábito de receber visitas. Semanalmente ele nos procurava para “saber das novidades”, como costumava dizer e, eventualmente, ficava para almoçar. Não gostava de aceitar convites de última hora. Era como se não pudesse quebrar uma programação pré-estabelecida, como se o dia não devesse ter imprevistos. Despedia-se dizendo sempre a mesma frase:
“- Vou andar! Até mais, minha gente!”
E seguia solitário, a vagar pela vida. Lembrava o mito de Sísifo, que diariamente cumpria um trabalho árduo, levando uma pedra ao alto da montanha, para depois vê-la rolar de volta à origem e ter de recomeçar a tarefa no dia seguinte.
Quando chegava algum parente nosso do nordeste, era ele quem aguardava na rodoviária ou no aeroporto. Acordava mais cedo, chegava com antecedência e trazia o visitante com satisfação até a nossa casa. Nesses períodos vinha nos ver com mais freqüência. Demorava mais, conversava muito e, nos dias quentes, tomava sucos e água gelada, comentando:
“- Ô que beleza de água! Bem gelada!”
Os sobrinhos riam e aquele convívio nos deixava contentes por vê-lo sendo capaz de momentos de maior espontaneidade e, sobretudo, de mais alegria. Sempre me perguntava o que o teria feito tão sozinho no mundo. Era como se ele tivesse interrompido a seqüência normal da vida e escolhido sua própria forma de continuar. Com valores e costumes particulares, convivendo com lacunas que não sabia preencher, projetando-se num mesmo filme inúmeras vezes, onde faltavam atores e o roteiro era incompleto.
Quando eu tinha os meus dezoito anos, tio Zeca teve um problema cardíaco e morreu poucos dias depois. Encontramos em sua carteira de documentos uma foto antiga e já bem desgastada. Era de uma jovem de traços finos e sorriso discreto. No verso uma dedicatória apaixonada redigida em 1932. Era Isabel. Soubemos que havia sido noiva de meu tio, sua única e verdadeira paixão na vida. Nada teve o poder de apagar aquela ausência e finalmente entendi que, desde os idos anos trinta, meu tio Zeca deve ter ficado se perguntando, de rotina em rotina, por que cargas d’água ainda permanecia neste mundo.
sexta-feira, 21 de setembro de 2007
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Um comentário:
The,
Excelente seu texto. Eu, que tive o privilégio de conhecer nosso personagem, posso afirmar que vc retratou-o com perfeição. Parabéns !
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