segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Apagão Literário?

O que houve com os escritores deste blog?
Sucumbiram ao carnaval?
Estão preocupados em entender os gastos com os cartões corporativos?
Trata-se de um apagão literário?

Começamos o mês de fevereiro bem, com 7 postagens até o dia 7, média de uma por dia, e depois travou geral. A última postagem foi o primeiro e único episódio da série “Maria Mariola” por sinal muito bom, deixando a todos dúvidas quanto ao paradeiro da personagem e o conteúdo do embrulho.
Será que estamos todos guardando forças e idéias para a oficina 5?
Vamos lá pessoal, mãos a obra, nas postagens e nos comentários.
Assunto não falta! olhem só...

Corporativismo ( segundo o Dicionário Aurélio ) - Sistema em que as classes produtoras se reunem em corporações, sob fiscalização do Estado.

E as duas "pérolas" do nosso presidente esta semana?

O Cartão Corporativo foi uma idéia fantástica do governo anterior!

Na Antártida : Isto aqui é uma grande geladeira!



Paulo Borchert

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Maria Mariola

Carlos Melo

Ela vivia perambulando pelas ruas do bairro. Diariamente, de segunda a domingo. Negra, suja e maltrapilha. Os cabelos ensebados denunciavam que não viam água há séculos. Entretanto, quem a olhasse com mais atenção perceberia que escondida embaixo daquela sujeira humana havia uma mulher de traços marcantes, lábios grossos e nariz afilado. Quase se poderia afirmar que, se a submetessem a uma faxina geral com muita água e sabão e a um “banho de loja” surgiria, como que por encanto, uma negra bonita, talvez interessante, talvez até charmosa.

Sempre com calçados velhos e tortos, carregava invariavelmente um pacote sob o braço. Envolto em inúmeras folhas de jornais amassados, ela o ajeitava nervosamente o tempo todo. Transportava aquele embrulho com preocupação e com tamanho cuidado que dava a impressão que guardava algo de valor inestimável, o qual protegia e defendia com unhas e dentes. Não se afastava do pacote em hipótese nenhuma. Nem quando parava para se alimentar. Nunca ninguém conseguiu saber o que havia dentro daquele monte de jornais desarrumados. Na outra mão, conduzia um saco preto, imundo, de lona ou algo parecido. Nesse saco ela enfiava coisas que catava nas latas de lixo. Era inútil tentar saber o que lhe interessava. Pegava garrafas, mas não todas; recolhia latas, mas não qualquer uma; vidros, só alguns. Jornais e certos objetos inservíveis também eram colecionados. Cada peça recolhida era analisada demoradamente antes de ser selecionada e ir para o saco.

Sua via sacra diária se resumia em recolher coisas do lixo e tomar conta do embrulho. Bastante conhecida no pedaço, alimentava-se com facilidade através de doações dos moradores. Não ameaçava ninguém sob nenhum aspecto. O semblante era sempre triste. Pouco falava e nunca sorria. Vagava sossegada pelas ruas durante todo o dia, futucando cuidadosamente as caçambas, sem derramar ou espalhar lixo pelo chão. Nada ou quase nada se sabia a seu respeito: sua idade (aparentava uns quarenta e cinco), o verdadeiro nome, onde morava, se tinha família ou o que fazia com tudo aquilo que recolhia. Muito menos satisfazia a maior curiosidade de todos, em especial da molecada: o conteúdo do misterioso pacote.

Todos a chamavam de Maria Mariola. Ela, por sua vez, era indiferente ao apelido. Jamais demonstrou gostar ou não gostar do nome. A hora em que lhe ofereciam comida representava o melhor momento para se tentar saber algo a seu respeito. As donas de casa metralhavam-na de perguntas nessas horas. Ela, sem perder a calma, respondia o que queria. Geralmente preferia balançar a cabeça positiva ou negativamente. Falar mesmo, um ou outro monossílabo. O mais comum, entretanto, era manter-se calada diante das perguntas curiosas, alheia a tudo e a todos. Ou então, dar respostas que nada tinham a ver com o que lhe perguntavam.

Nem nos momentos em que a garotada resolvia perturbá-la perdia a calma. Apressava os passos e saía da área de atrito com rapidez e sem nenhuma reação.

Certa vez, um grupo de moleques decidiu segui-la num final de tarde com a intenção de descobrir seu domicílio e, com um pouco de sorte, o mistério do embrulho. O caminho que ela percorreu foi tão longo e tão demorado que os perseguidores, cansados, desistiram e retornaram vencidos sem cumprir a missão. Um deles, o mais espevitado de todos, jurava ter visto, dentro do tal embrulho, um porta-retratos com a foto de uma criança que era a “cara de Maria”.

Um dia, Maria Mariola não apareceu. Nem no outro e nem no seguinte. E nunca mais. Ninguém nunca soube que fim levou aquela Maria triste, silenciosa, solitária, maluca mansa. Teria morrido ? Se alguém no mundo, em especial, sentiu sua falta ninguém nunca poderá dizer. Mas a verdade é que todos que a conheceram e a encontravam todos os dias, durante tantos anos, sentiram sua ausência. Maria se foi. Simplesmente sumiu.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Empório de Sentimentos

Sergio Quintella

[Uma mulher passa apressada no centro da cidade,quando de repente é atraída pelos gritos de um vendedor em frente a uma loja]:

- Olha aí pessoal!!!!!!!. Quem precisa trocar,vender ou comprar sentimentos!!!- gritava um rapaz na frente da loja, e foi tomada de uma surpresa indescritível.
- O que é isso? !!!!!!- disse ela para si, e...não agüentou, chegou junto do rapaz e perguntou .
Ele foi logo dizendo: - É só entrar!.
[Ela, meio ressabiada, é verdade, foi entrando e logo veio um vendedor de aparência tranqüila e olhar sereno.]
- Em que posso servi-la? - indagou;
- Não... eu estou de passagem, e com certa pressa, e só queria saber como é que esse negócio funciona, enfim, que negócio é esse?...
- Ah!!!, já sei, disse o vendedor, a senhora nunca viu esse tipo de negócio não é?
-É isso mesmo, por favor, eu só quero ter uma idéia “por alto”, vamos assim dizer..
-Bem, disse o vendedor, como a senhora está vendo, a loja está cheia de estantes com prateleiras , e o conjunto está dividido em colunas, onde cada coluna tem um título. Nesse lado temos, amor, ternura, carinho, fraternidade, compreensão, tolerância, solidariedade, renúncia, alegria, e esperança ; mais para lá, acho que ainda dá para ver, temos sacrifício, boa vontade, e mais para frente, deste outro lado, temos ódio, rancor , vingança, inveja, desdém, intolerância, agressividade, má-fé , esperteza...
[A senhora interrompe ]
- Mas esperteza não é sentimento meu senhor, é atitude.
No que o vendedor retruca :
- Por trás da atitude está outro produto nosso, a ganância, ou aquele outro já dito, a má-fé -e continua - Como a senhora vê, aqui comercializamos sentimentos e o negócio funciona assim: Digamos que uma pessoa tenha uma determinada carência. Digamos também que ela vá se deparar com alguma situação que requeira o emprego do sentimento que ela carece. Isso vai fazer com ela vá ao encontro de uma situação que poderá ser muito desconfortável ou até mesmo bem prejudicial, ou quem sabe, irremediável. Nesse caso, essa pessoa vem aqui e procura transacionar a carência em causa, ou seja, aquela da qual depende para enfrentar a situação.
- O senhor agora empregou um verbo que não havia mencionado. O senhor havia dito comercializar, e não falou em transacionar...
- É que aqui, como dito, trocamos, vendemos ou compramos sentimentos, o que, efetivamente, são transações, porém o que posso aduzir agora, já que a senhora quer mais detalhes, é que também alugamos, arrendamos, consignamos, e dependendo de cada caso, credenciamos a pessoa para transacionar com nossos produtos mediante Representação.
- Ah!! Que fantástico!! - disse a mulher admirada - Um momento, por favor, que eu vou desmarcar um compromisso para dispor de mais tempo para que o senhor me explique mais um pouquinho sobre esse negócio;
- Pois não senhora, esteja à vontade, disse o vendedor,constatando que tal tipo de comércio era realmente muito novo na praça;
-Senhor, diz a mulher, gostaria de saber a questão dos preços. Como é que é?...
- Bem, essa questão varia bastante. Como são várias as modalidades de comercialização ou transação, vários também são os preços. Vejamos então uns poucos exemplos, ah!, a senhora me desculpe, mas já estão esperando por mim ali do lado.
- Vamos fazer o seguinte nesse caso, disse a mulher : O senhor atende à pessoa e eu me aproximo para assistir à transação !;
- Está bem senhora, então aproxime -se quando eu me dirigir ao freguês.
O vendedor vai até ao freguês e se coloca à disposição]
- Bom dia!, tenho daqui a uma hora uma reunião muito importante onde vou decidir o destino de um imóvel e preciso de raiva e agressividade para enfrentar o empresário que quer comprá-lo a preço de banana para incorporar um edifício no local.
- Pois não senhor , que espécie de transação prefere: comprar ou alugar?
-Alugar, diz o interessado, pois tais sentimentos não me interessam,
- Bem , senhor, a raiva está a R$ 5,00 /hora e a agressividade, R$ 2,00
[O freguês aceita o preço e o vendedor apanha dois frascos na prateleira,entrega ao freguês, que se dirige ao caixa da loja e paga. Após, vai para uma cabine onde a mulher percebe que o mesmo inalou o produto e sai dali bufando pelas ventas]
-Nossa Senhora!!,- diz a mulher atônita, nunca vi isso na minha vida! - Por que é tão barato?
- Porque esses produtos praticamente são oferecidos por centenas ou mesmo um milhar de pessoas diariamente aqui na loja. Na verdade, quase todo mundo tem e só um ou outro não os dispõe em quantidade suficiente...
-E quanto custa o amor meu senhor? - Indaga a mulher com visível ansiedade;
- Ah! Senhora, se for para alugar, no momento está custando R$ 300.000,00/hora pois sua cotação varia muito durante o correr do dia, aumentando bastante no que vai entardecendo mas se for para comprar, aí a senhora me desculpe, mas o amor nós não vendemos, só alugamos.
É muito difícil vir alguém aqui vender esse produto.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

A paquera

Fabio Bastos

Ao entrar no bar do hotel em São Paulo, Julio não imaginava que estaria entrando também numa nova vida. Era o melhor momento do dia para ele, a hora do encontro com o velho amigo Johnnie Walker. Enquanto o barman o servia, deu uma olhada no local. Notou uma mulher, jovem, bonita e bem vestida, sentada sozinha numa mesa. Sorriu para ela e a cumprimentou com o copo de whisky. A mulher retribuiu o cumprimento com um sorriso e com o copo do colorido e enfeitado coquetel de frutas que bebia.
- Eu sou Julio, carioca, e detesto beber sozinho. Posso me sentar aí com você?
- Fique à vontade - ela respondeu mantendo o sorriso - Eu sou Renata, paulista, e estou esperando uma amiga para jantar.
Após a breve apresentação eles engrenaram uma animada conversa enquanto bebiam. Pouco depois Renata recebeu uma ligação no celular; ouviu mais do que falou e ao desligar comentou:
- Levei um bolo, a minha amiga não vem mais.
- Hoje pode ser o meu dia de sorte. Eu ia jantar sozinho, o que é pior do que beber sozinho. Já que somos dois abandonados, que tal jantarmos juntos? - disse Julio aproveitando a oportunidade inesperada.
Ela aceitou e eles saíram para jantar num restaurante italiano. Um jantar a luz de velas, pratos sofisticados regados com um tinto importado e um piano suave ao fundo. Enfeitiçado pelo ambiente, pela beleza e jovialidade de Renata, Julio sonhava acordado enquanto conversavam. Queria tocá-la, abraçar aquele corpo jovem, acariciar seus cabelos, sentir o perfume daquela pele lisa e macia, beijar os lábios sensuais. Renata parece que leu o pensamento dele e o ajudou.
- Julio, eu tenho uma coisa para te contar. Eu sou uma garota de programa. Se você quiser continuar a conversa depois daqui, eu estou à sua disposição.
Uma ducha de água fria caiu bruscamente sobre o ego machista de Julio. O encanto da paquera se desfez como uma bolha de sabão que estoura e some no ar. De um momento para o outro os papéis se inverteram, Renata deixou de ser caça para ser caçadora.
- Quem te ligou lá no bar foi mesmo a tua amiga? - Julio perguntou recolhendo o sorriso.
- Não - Renata respondeu colocando a mão em cima da dele - Foi o barman, mas você não vai ficar chateado comigo por causa disso, vai? Eu só saio com pessoas que me atraem e você é uma delas. Você não está interessado em ficar comigo?
Continuou com a mão sobre a dele, sabia que o contato físico era importante naquele momento, nem que fosse um simples carinho na mão. O peixe estava mordendo a isca e precisava de um incentivo.
- Você ainda não me disse o seu preço - Julio comentou sério, deixando a mão dela onde estava.
- Essa é a parte chata do meu trabalho e eu deixo por sua conta. Amanhã você me dá o que achar que eu mereço - Renata passou a acariciar a mão dele.
Julio não resistiu por muito tempo e engoliu a isca. Estava fisgado. Após o jantar voltaram para o hotel e Renata mostrou do que era capaz.
Aos 40 anos Julio estava preso a um casamento fracassado, já não se entendia com a mulher há algum tempo e mal se falavam. Ela não pôde ter filhos, o que foi uma frustração para o casal e contribuiu para deteriorar o relacionamento. Na vida profissional também estava insatisfeito, era uma vítima do golpe do baú. Trabalhava e ocupava um bom cargo na empresa do sogro, morava no apartamento dele e até o carro que usava era da firma.
Acomodado no casamento e no emprego, e sem motivação para jogar tudo para o alto, a vida dele mudou depois de conhecer Renata. Ficara escravo da beleza e da juventude dela, quase vinte anos mais nova do que ele. Era um homem feliz quando a encontrava em São Paulo, mas vivia em conflito. Se por um lado estava apaixonado, por outro a rejeitava por ela ser uma garota de programa.
A paixão era correspondida. Renata parou de aceitar “doações” pelos serviços e esperava ansiosa pela visita semanal. Julio era o homem maduro, bem sucedido na vida e carente de afeto com quem sempre sonhara. Passaram a sair juntos na noite paulistana. Debaixo dos lençóis trocavam carícias e confidências, a cama se transformou no divã do analista. Julio foi o primeiro a desabafar e depois foi a vez Renata contar sua história, uma história triste como a de qualquer puta. Eram dois carentes querendo mudar de vida.
Julio tomou a iniciativa e resolveu ajudar Renata. O primeiro passo foi afastá-la da amiga com quem morava e a levara para a prostituição. Alugou um apartamento para ela e comprou móveis, eletrodomésticos, louça, roupas de cama, etc. Mobiliou com o que havia do bom e do melhor. Renata escolhia e Julio pagava, a felicidade dela não tinha preço. Com todas essas despesas, ficou com as finanças seriamente abaladas e se endividou com bancos e cartões de crédito.
Renata fez a parte dela, arranjou emprego numa loja e voltou ao nome de batismo de Denise. Julio só não era completamente feliz porque o fato de ela ter sido garota de programa ainda não havia sido totalmente superado. A superação veio numa noite de amor, quando ela declarou que queria ter um filho dele. Era a motivação que faltava para Julio tomar a decisão de se separar e recomeçar a vida com Denise. O amor, finalmente, vencera o preconceito. Para celebrar aquele momento feliz, a presenteou com um carro, endividando-se um pouco mais. Denise retribuiu e naquela noite, no aconchegante e bem decorado ninho de amor, voltou a ser “Renata”.
Na manhã seguinte Julio viajou para o Rio, prometendo que voltaria com novidades. Estava disposto a começar vida nova. No sábado avisou para a mulher que queria se separar, fez as malas e foi para um hotel. Não precisou esperar pela segunda-feira para saber sua situação na empresa. No domingo foi despedido pelo telefone por um sogro furioso. Não se importou e, de certa forma, ficou aliviado. Denise era a única coisa que importava. Pensou em ligar para ela e contar a novidade, mas desistiu, queria dar a notícia pessoalmente, para curtirem juntos aquele momento feliz.
Na segunda-feira à tarde embarcou para São Paulo, com passagem só de ida. Viajou desempregado e endividado, mas feliz e livre como nunca. Era um homem apaixonado que voava para uma nova vida ao lado da mulher amada e do filho que iriam encomendar. Comprou uma caixa de bombons no aeroporto para presenteá-la no momento de dar a notícia. No táxi, a caminho do seu novo lar, sonhava com o momento de se jogar nos braços de Denise e lhe contar tudo. Ao abrir a porta do apartamento, um calafrio percorreu o seu corpo.
Não havia absolutamente nada dentro. Nada! Sala, quarto, cozinha e banheiro vazios. Denise, Renata, ou quem quer que ela fosse, tinha levado tudo que eles haviam comprado, só deixou pregos nas paredes nuas. O ninho de amor estava desfeito e com ele o sonho de uma nova vida. Sem saber o que pensar, com a mala numa mão e a caixa de bombons na outra, bateu na porta do apartamento ao lado.
-O que aconteceu? - perguntou para a vizinha, uma velha fofoqueira que sabia de tudo que se passava no prédio.
- O que aconteceu, meu filho, é que no sábado veio um caminhão de mudanças e levou tudo embora. A Denise acompanhou a mudança ao lado do rapaz que freqüentava o apartamento nos fins de semana. Eles foram embora e nem se despediram de mim - ela respondeu com um sorriso sarcástico no rosto.
Julio deu a caixa de bombons para a vizinha e se trancou no apartamento vazio. Sentou na mala, colocou a cabeça entre as pernas e chorou.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Realidade de um carnaval


Quando a escola, desce o morro e sai na avenida
Vem mostrando
pra gente que a vida
É ingrata com a gente do morro
É no desfile que se vê
As baianas que passam sorrindo
Os passistas vão evoluindo
Na mesma rua onde ontem varreram
Ontem esquecidos hoje atração
O samba enredo irradia alegria
Na verdade é só na melodia
Quarta feira é que mostra a razão
Hoje desfilam, cantam
Tendo o povo como companhia
Mas amanhã termina a fantasia
Vão solitários vassoura na mão
Varrendo a rua
Que ontem foi palco mas só por um dia
Hoje é cenário da sua agonia
Em busca do salário pra comprar o pão

- Letra de um samba enredo escrito por mim em 1970, quando ainda não havia sambódromo, e onde eu estava como médico do Souza Aguiar, e vi passar após a última escola um bando de garis varrendo a pista.
Paulo Borchert


Sotaque Baiano

Therezinha Mello

(Inspirada na obra A vida como ela é, do mestre Nelson Rodrigues)

O carro de Jaciara tinha enguiçado perto da Quinta da Boa Vista e alguém indicou a oficina mecânica do Manoel para resolver o problema. Jaciara andou uns dois quarteirões e, quando chegou, Manoel já estava fechando o estabelecimento. Ela insistiu e ele acabou não resistindo aos apelos da cliente, embora já passasse das dezoito horas. Era uma baiana vistosa, falante e desinibida, usava um vestido colado no corpo, apesar de possuir alguns quilos acima do que seria, em tese, o peso ideal. Brigava diariamente com a balança, mas sem perder a pose em hipótese alguma.

Manoel, solteirão, já perto dos cinqüenta, era esperto com os negócios, mas ingênuo com as mulheres. Seu pai lhe deixara a velha oficina de clientela fiel, onde todos os dias trabalhava com Matias, seu ajudante e amigo, levando o que se poderia chamar de uma vida tranqüila. Tinha um inexplicável fraco pelas baianas. Ainda moço tinha ficado noivo de uma, que acabou fugindo com outro para o sul, deixando-o com enxoval, casa alugada e o bairro inteiro para explicar o que tinha acontecido. Nunca mais tinha pensado em casar.

Consertou o carro de Jaciara sem maiores dificuldades, mas não aceitou o pagamento. Disse que “ficaria por conta da casa”. Ela, simulando constrangimento, convidou-o para tomar uma cerveja. Manoel aceitou de imediato, encantado que estava com aquele maldito sotaque baiano, que já tinha sido sua perdição uma vez na vida. Na despedida a sedutora Jaciara agradeceu por tudo e acabaram marcando novo encontro. Ela beijou-lhe demoradamente a bochecha avermelhada, menos pelo álcool do que pela timidez.

Em pouco tempo estavam morando juntos no pequeno apartamento de Manoel, no Engenho Novo. Ele era feliz na sua nova rotina, entre a oficina e os carinhos de Jaciara. Ela tinha lá umas manias, que deviam mesmo ser coisas de mulher. Era ousada nos decotes, gostava de uns shortinhos muito curtos e, se ele fazia alguma observação, perguntava dengosa se a estava achando feia, se não gostava mais da mulherzinha dele, fazendo cara de zanga. A essa altura costumava chamá-lo de “meu rei” e ele, arrependido, pedia perdão. Jurava não mais implicar com aquele jeito dela, que no fundo adorava.

Um dia recebeu um telefonema na oficina. O Matias avisou: “-Vem logo, que é de Portugal!”. Quando desligou Manoel estava atônito. Seu único tio estava muito mal de saúde e queria lhe ver. Ele precisaria ir a Portugal. Mas era difícil deixar a oficina assim, de uma hora para outra e, pior ainda, deixar Jaciara sozinha. Matias tentava acalmá-lo. “-Vai homem! Eu cuido da oficina pra você!”.

Manoel estava nervoso. Quando chegou em casa, contou a estória à mulher. Queria que ela fosse junto, só assim ele iria. Para sua surpresa, Jaciara incentivou-o a ir sozinho. Disse que era caso de vida ou morte, coisa de família e que, além do mais, ela poderia ajudar ficando na oficina, tomando conta do caixa. Olhando Manoel nos olhos, disse: “- Meu rei, meu rei, o olho do dono é que engorda o boi!”.

Manoel hesitou, mas ela o convenceu. Em uma semana comprou passagem e fez a mala. Após despedida chorosa, partiu para a santa terrinha, deixando a esposa com um ar de felicidade maior do que ele poderia esperar. Vinte dias depois, Manoel voltou. Não podia viver nem mais um dia sem a sua Jaciara. Resolveu fazer uma surpresa à mulher e retornar ao Brasil sem avisá-la. Queria matar a saudade daquele corpo roliço e moreno que o enlouquecia de prazer.

Chegou ao apartamento do Engenho Novo e, sem tocar a campainha, abriu a porta num gesto afobado. Numa das mãos um imenso ramo de flores. Quando se deu conta do que via, quase perdeu a fala. Os cômodos estavam completamente vazios. Chamou pela mulher desesperado e só ouviu um eco. Pelas paredes as marcas dos quadros que haviam sido retirados. Jaciara tinha levado tudo: todos os móveis, o aparelho de ar condicionado, as roupas, a cama, tudo.

No meio do quarto apenas o travesseiro de Manoel e um bilhete. “-Meu rei, cuide de nosso ninho. Vou embora com Matias para Salvador. Não te mereço mais!”. Manoel ajoelhou-se no chão e, com o rosto enfiado no travesseiro, chorava e dizia: “-Volta, Jaciara, volta que eu te amo, mulher!”.

Florença

Therezinha Mello

Depois que me aposentei abri um leque interminável de opções, algumas de lazer, outras de trabalho e em nenhuma delas incluí um chefe ou um horário determinado. Era importante que me sentisse livre. Um dia me chegaram umas fotos da cidade de Florença, na Itália. Eram recantos dos sonhos, que com os jogos de luz do bom fotógrafo, tornavam-se urgentes. Era preciso conhecê-los logo.

Aquelas fotos me convidaram a lá estar pelas ladeiras estreitas, lançando o olhar ao longe para a histórica cidade, como se ela estivesse aguardando por mim ao longo dos séculos, desejando acolher meu perambular solitário, minha admiração, meu êxtase. As imagens não me saíram mais da cabeça e perseguiram-me como num jogo de esconde-esconde, onde quer que estivesse.

Um dia decidi. Resolvi comprar a passagem e ir a Florença sozinha. Isso representava um verdadeiro terremoto existencial. Eu jamais tomara uma atitude parecida antes e deixar o Rio de Janeiro num avião para a Itália, contando com a companhia que casualmente a empresa aérea colocasse na poltrona ao meu lado, era inimaginável.

Comecei como a maioria das pessoas, por uma agência de viagens, por folhetos coloridos, orçamentos possíveis, à vista, parcelados, com direito a isso, sem direito àquilo, com guia, sem guia, em hotel assim ou assado. Usei o pouco do bom senso que ainda guardava comigo para qualquer emergência e me decidi por um pacote de quinze dias, um hotelzinho simples e o direito a uma guia local, que eu poderia acionar, se quisesse.

A dificuldade com a língua me preocupava um pouco, mas eu não queria de modo nenhum andar em Florença o tempo todo com alguém a tiracolo. O encontro que tinha marcado era comigo e com aquelas fachadas, aqueles cafés e aquelas noites que falavam de um tempo remoto. Pela primeira vez na vida eu sabia que poderia ser uma excelente companhia para mim mesma.

Na hora do embarque, a boca seca denunciava minha apreensão diante de mim mesma, da minha coragem, do meu topete diante da vida. Acomodei-me na poltrona do avião junto ao corredor. Ao meu lado, ninguém, a princípio. E a poltrona ficou vazia mesmo durante todo o vôo. Surpreendentemente eu mantinha uma estranha calma.

O avião decolou e eu dormi depois do jantar. Acordei bem, muitas horas depois. Quando cheguei em Florença e disse “-Bom giorno!” ao motorista do táxi, eu sentia muito frio e uma emoção forte no peito. Olhei para mim mesma e chorei, sentindo que renascia ali, naquele instante e de alguma forma tão nova, que não consigo descrever.