sábado, 26 de janeiro de 2008

Faro de padre

No Hospital Souza Aguiar no centro da cidade do Rio de Janeiro, na década de 70, havia um padre já bem idoso com sotaque alemão, que era o responsável pela capela que existe até hoje no pátio do hospital. Toda segunda feira, ele subia ao quarto andar, onde ficavam as crianças internadas, para dar a sua benção. Eram 6 enfermarias com 10 leitos cada, e na época as crianças ficavam sozinhas nos leitos, desacompanhadas de suas mães.

O padre não tinha tempo para passar em todos os leitos, e ele então andando com seus passos lentos, arrastando as sandálias, embora não sendo médico, ia direto aos mais graves. Tinha um faro clínico melhor que o de muitos doutores, e acabava encontrando sua “vítima”. Era ele “benzer” com o “pelo sinal” e no máximo 2 dias depois a criança falecia.

Era uma extrema-unção premonitória!

Como sua fama chegou a seus ouvidos, ele começou a fazer visitas sem dia certo.

Na UTI ele era proibido de entrar. Os médicos alegavam que era para evitar contaminação, e ele a contragosto voltava para sua capela.

As enfermeiras e os médicos, quando ele entrava no setor de pediatria, corriam a esconder as crianças “em risco”, mas de nada adiantava. O homem com seu faro pressentia a gravidade, e acabava encontrando sua “vítima”. A frase “rápido que lá vem o padre “ ficou famosa, mas pouco adiantava.

Alguns casos, talvez aumentados por sua fama, corriam pelo hospital :

Dizem que certa ocasião ele entrou numa das enfermarias se confundiu e “benzeu” uma criança que estava para ter alta, pois a que ele tinha “escolhido” no leito ao lado, tinha descido para o Raio X.. Dito e feito: no dia seguinte a criança ao invés de ter alta começou a apresentar febre, evoluiu com pneumonia e teve que ser transferida para a UTI com insuficiência respiratória e acabou falecendo.

Finalmente ele ficou muito velhinho e com dificuldade de locomoção, passou a só ficar na capela até o fim dos seus dias, pois padre, a exemplo do Papa, não se aposenta.

Dizem as más línguas, que faleceu após um “pelo sinal” que fez nele mesmo, que por via das dúvidas ele sempre evitava fazer, limitando-se ao sinal da cruz.

Outros dizem que foi suicídio...

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Lá como cá

Maria Teresa Garcia

Em 1990 minha filha, Patrícia, foi aprovada numa seleção para trabalhar no Banco Central da Suécia. Como nunca havia saído do Brasil e iria morar, sozinha, tão distante de nós, achamos conveniente que ela passasse período em Portugal, com um casal amigo nosso, até a data de sua apresentação em Estocolmo. O que ainda demoraria alguns meses. E lá se foi a nossa Biguti para "Lugar D`Aldeia", povoado pertencente a "Santo Tirço", que, por sua vez é distrito da cidade do Porto. No princípio correu tudo bem. Por não gostar de ficar parada, a futura "intern" do BC sueco, foi plantar batatas, literalmente. Ajudava nosso amigo Manoel na pequena plantação.
Só não contávamos que a endêmica nostalgia portuguesa, cujo principal produto é o fado, fosse atacar uma brasileira, morena de beira da praia. Assim nossa menina entrou em depressão.
Agora preciso fazer um esclarecimento: Biguti foi o apelido que meu sogro colocou na primeira neta, a roliça Patricia, assim que a avistou através da envidraçada janela do berçário. Lamentavelmente não tive curiosidade de perguntar-lhe o significado da palavra e, pouco mais de um ano depois, ele faleceu. Mesmo sem saber o que quer dizer, o apelido ficou e é usado, até hoje, em ocasiões especiais. E aquela era uma ocasião especialíssima.
Em 1990 ainda não tínhamos computador em casa, telefonar para "Lugar D`Aldeia" era impossível e nosso meio de comunicação eram as cartas assim endereçadas:
Patricia - 2ºnome - 1º sobrenome - 2º sobrenome _ tomando todo o cuidado com os desdobramentos do endereço, que era longo.
Combinamos então que nos revezaríamos, escrevendo para ela todos os dias, e colocando o apelido "Biguti", usando parênteses, entre o 2º nome e o 1º sobrenome.
Além da depressão ela passou a conviver com a falta de notícias brasileiras.
Assustada, nossa menina foi a Santo Tirço, de onde nos telefonou e ficou sabendo que as cartas estavam sendo enviadas e eram abundantes pois todas as irmãs estavam participando do revezamento. O total de missivas, não entregues, já beirava os vinte!
Imediatamente Pat/Biguti dirigiu-se ao posto dos Correios onde de nada adiantaram seus apelos, suas lágrimas, a apresentação do passaporte, nem a mostra das outras cartas com seu nome e endereço.
Pois se nestas não constava o apelido "Biguti" era porque não se tratava da mesma pessoa._ E as letras? E os remetentes? Não serviam de prova? - perguntava uma aflita brasileira.Por sorte, lá como cá, existe o célebre QI (quem indica) e um amigo do seu Manoel, era amigo do prefeito e conseguiu, finalmente que as cartas fossem entregues.
Mas, avisaram à menina, para que ficasse bem claro, ser uma deferência ao senhor Prefeito, porque as cartas não lhe pertenciam.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Ao padroeiro

Maria Teresa Garcia

Hoje, seu dia São Sebastião, não dá para passar em branco pelos inúmeros problemas da nossa cidade. Diz a lenda que foi com a sua ajuda, literalmente, que os portugueses conseguiram expulsar os franceses do Rio de Janeiro.
Realidade ou mito é ao senhor que me dirijo nestas maltraçadas linhas.
São Tião dê uma olhadinha na nossa terra.
Como o senhor sabe, ela está espremida entre o mar e as serras.
O alcaide das serras não é o mesmo da cidade do nível do mar.
As serras estão, em sua maioria, ocupadas por moradias de trabalhadores, gente humilde e honesta que paga imposto queira ou não.Apenas é outro tipo de imposto.
Muitas vezes o pagamento vem através do sacrifício de alguém da família.
O Santo lembra quando os cidadãos ofereciam suas virgens, em holocausto, para que a colheita fosse boa?
Agora não há colheita, apenas o sacrifício. E não mais de virgens.
Qualquer pessoa, de qualquer idade ou sexo, pode ser morta, ou ficar paralítica, por balas perdidas ou dirigidas, apenas exercendo o seu direito de ir e vir.
Quem quer viver aqui tem que pagar. Nem que seja com a vida!
Voltemos aos que vivem no nível do mar: seu alcaide é outro.
Este não quer saber da vida do cidadão, somente do seu dinheiro.
Os pagantes também querem saber pra onde vai o dinheiro.
Limpeza urbana? A cidade está imunda!
Saúde pública? Os hospitais municipais estão a míngua!
Educação? Assim como a saúde, não consta da lista de prioridades do governo.
E aí São Tião? O que dá pra fazer?
Se olhar com bastante atenção, verá que o alcaide do nível do mar traz traços semelhantes a um outro, este um corso, que foi o responsável pela fuga da família real portuguesa para o Brasil.
Fugindo dos franceses, eles se fixaram no Rio de Janeiro.
Aí, dizem, começaram as mazelas: favelização, mais impostos, aumento do tráfico (naquela época apenas de escravos) e exploração desenfreada de todos os nossos recursos.
Viu no que deu ajudar a expulsar os franceses?
Não que a coisa fosse ficar diferente mas, pelo menos, falaríamos francês.
O senhor há de concordar que é muito mais “chic”.
Agora, falando sério São Sebastião, o senhor nos ajudaria a expulsar os todos os alcaides? Promete que vai pensar no assunto? Amém.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Cine Pirajá

Paulo Borchert

Nos anos 60, havia alguns cinemas em Ipanema e Leblon, todos na beira da rua. Não havia shoppings.

O Pax, na praça N.S.da Paz, luxuoso, com sua escadaria imponente na entrada e suas poltronas reclináveis, era mais freqüentado pelos mais velhos e no primeiro domingo do mês exibia o Festival Tom e Jerry. O Astória, no Bar 20, enorme e suntuoso, com dois andares e uma linda escada dupla, toda em madeira, que dava acesso ao balcão. Mais tarde foi transformado em TV Excelsior e depois demolido para dar lugar a um prédio de apartamentos. O Leblon que funciona até hoje, era um só, com dois andares. O Miramar, incrivelmente situado na Avenida .Delfim Moreira, isso mesmo, na rua da praia do Leblon!

Mas nenhum deles tinha o charme do “pulgueiro“ Cine Pirajá! Era um cinema muito antigo situado naVisconde de Pirajá perto da Joana Angélica, com suas desconfortáveis cadeiras de madeira e sua tela manchada e encardida, mas era o preferido entre os jovens. Toda segunda e quinta feira, mudava o programa, nunca com lançamentos, só filmes de segunda categoria, e nestes dias na sessão das 8, iam todos, moças e rapazes, ao “Metrinho”, como era mais conhecido, na certeza de diversão e boa paquera, independente do filme. A bagunça era generalizada. Se o filme fosse de terror, algum engraçadinho que já tinha visto, soltava um grito estridente na hora do maior suspense. Tinha um gaiato que possuía um arroto de proporções descomunais ─ se houvesse o Guiness Book na época ele estaria inserido no mesmo com toda certeza ─ sempre soltado no momento mais emocionante e mais silencioso do filme, que era seguido de uma estrondosa gargalhada geral.

Certa ocasião, foi fechado por alguns dias para “reforma”, que não passou de uma água de tinta em suas velhas paredes, e uma tela nova branquíssima, que na primeira sessão das 8, no dia de sua reabertura, recebeu um ovo bem no centro, deixando uma mancha que nunca mais saiu, até o fim dos seus dias.

E assim seguiu no tempo, até sucumbir a proliferação das novelas, filmes na TV e vídeolocadoras. A violência urbana com assaltos nas ruas, tornando cada vez mais perigoso uma ida ao cinema em beira de rua e a explosão imobiliária, foram a gota d’água para seu fechamento.

Hoje, vamos ao cinema de carro, parando nos estacionamentos dos shoppings, com seus cinemas modernos, mas nenhum com o charme e o glamour do velho Pirajá !

Verão carioca

Fabio Bastos

No calendário o seu início é lá pelos meados de dezembro, mas é em janeiro que a cidade entra pra valer no clima de verão. É a estação com a cara do Rio. Praias cheias de crianças, mamães, babás, velhos, turistas, surfistas, vendedores ambulantes, catadores de latas, rapazes sarados e moças de corpos dourados. Para aplacar a sede e espantar o calor haja água de coco, mate gelado, refrigerante, refresco e sorvete. Pouca roupa e muito protetor solar. Mulheres exibem corpos bronzeados em vestidos leves deixando-as ainda mais sensuais. A minissaia, inventada na Inglaterra, é o uniforme oficial do verão carioca. Homens suados vagam pelas ruas com paletós nos ombros em busca de um papo amigo e de um chope gelado.

O dia insiste em não terminar e dar lugar à noite. É época de aplaudir o pôr do sol no mar, um privilégio carioca. O calor não dá tréguas. Sol escaldante e asfalto amolecendo. Termômetros beirando a casa dos quarenta. Ar condicionado a pleno vapor gotejando nas calçadas e nos pedestres. É cruel com quem tem que trabalhar, a cidade deveria entrar em recesso de verão.

Fevereiro é o começo oficial do ano letivo, embora aulas pra valer só em março. É também o mês do carnaval, o grande momento do verão. Banda de bairro, bloco de sujo e baile gay. Travestis e mulheres se misturam e se confundem num festival de silicone e sacanagem. Sapucaí, fantasias, plumas, baterias, alegorias e muita mulher pelada. Mudam os enredos, mas a mesmice continua. Genitália desnuda já não impressiona mais. Talvez uma cópula ao vivo faça sucesso: preliminares na concentração, evolução na avenida e apoteose na praça do mesmo nome. Sempre mantendo a harmonia e sem atravessar o samba para não perder pontos.

Em março os turistas já se foram e a cidade entra em ritmo de trabalho. Mas as praias continuam cheias com os termômetros ainda em alta. É o carioca que se despede dos últimos momentos da estação. O horário de verão já terminou, a noite expulsou o dia e retomou seu lugar no firmamento. Nuvens carregadas e ameaçadoras se formam no horizonte. Temporais desabam nos fins de tarde alagando ruas e transtornando a vida da cidade. São as águas de março fechando o verão e a crônica.

Janeiro 2008

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A Marca

Ana Lúcia Prôa
Foi difícil tomar aquela atitude. Mas, um dia, encheu-se de coragem e arrancou de seu dedo a aliança que insistia em lembrá-la dos muitos e muitos anos em que se dedicara a um só. Ela estava lá em seu dedo apenas como enfeite fazia uns seis, sete, oito meses... Perdera as contas. Seu homem saíra de casa cansado da rotina, foi o que disse. E ela achou que seria passageiro. Pra que tirar a aliança então? Ele vai voltar.
O aro dourado em seu anelar era o símbolo da esperança. Olhava-o sempre com a certeza do retorno daquele a quem amava. Ou a quem se acostumara.
Não demorou muito para vê-lo desfilando com uma outra. Tipinho interessante, tão diferente dela. Tão cheia de vida! E ela ali... Como vela apagada com cera seca escorrida.
Ainda assim, não tirou a aliança. Fazia parte de seu corpo. Retirá-la seria tão violento quanto uma amputação. Não se sabia mais onde acabava a aliança e onde começava a pele. Era tudo uma coisa só.
Numa manhã, abriu os olhos e a primeira coisa que viu, pousada sobre seu travesseiro, foi a aliança-dedo. Esticou ainda mais o olhar e viu o travesseiro dele vazio. Por que ainda teimava em colocá-lo na cama? Sentiu náuseas. Levantou-se e o enjôo só fez piorar. Pensou em tomar um remédio, mas, a cada vez que olhava para sua mão esquerda, seu mal-estar se acentuava. Não era caso de remédio...
Foi aí que a coragem lhe subiu à cabeça, pegando um atalho pelo lado direito do peito, para não esbarrar no coração. Havia chegado a hora. Com os dedos da outra mão, começou a puxar aquele elo que não a ligava a mais ninguém. O elo insistia em ficar. Mas ela estava resoluta. Nada que um pouco de água e sabão não resolvessem. E foi com alívio que se deu a extirpação. O enjôo passou.
Mas nem deu tempo de comemorar a vitória sobre seus sentimentos. Seus olhos se arregalaram de pavor ao ver que, em lugar da aliança, restou em seu dedo um sulco. Profundo. Quase tão profundo quanto o sulco deixado por ele em seu íntimo.
Esfregou, esfregou, esfregou. Massageou toda aquela cavidade circular deixada pela aliança, mas nada de desaparecer. Ela era impotente perante a força daqueles anos e anos passados com alguém. Impossíveis de se apagar.
Passaram-se dias, semanas, meses... Como tatuagem, lá permanecia a marca de sua aliança.
Cansada de olhar para o símbolo do que não existia mais, resolveu colocar uma prótese: um belo anel com uma tremenda ametista se fixou por sobre o sulco.
Não o tirava para dormir. Não o tirava para tomar banho. A aderência foi total, sem rejeição da pele.
Começou a se sentir leve. Sua chama voltou a se acender. Decidiu se amar.
Um dia, resolveu arrancar a prótese. Não precisava mais dela. E que surpresa: a pele havia se regenerado. O sulco se preencheu de alegria de viver. As únicas marcas em seu corpo, agora, eram duas linhas de expressão no rosto que surgiam a toda hora, a cada novo sorriso.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A César o que é de César

Fabio Bastos

Dessa vez foi o Corinthians, mas Botafogo, Fluminense, Palmeiras, Grêmio, Atlético Mineiro e outros tradicionais clubes brasileiros já passaram por isso. Ia chamá-los de “grandes” clubes brasileiros, mas nossos clubes só são grandes nas suas dívidas. Estou falando de rebaixamento e do que acontece com o clube após o desastre consumado.
O primeiro a dançar é o técnico, que perde o emprego, mas se livra do rebaixamento. Com um pouco de sorte pode reaparecer num clube da primeira divisão. A seguir vem a famosa lista de dispensa de jogadores. Eles saem com o prestígio abalado, mas logo ninguém mais se lembra que foram culpados pelo vexame. Seus empresários os oferecem como “craques experientes” num mercado infestado por cabeças de bagres. Assim como o técnico eles podem permanecer na mesma divisão livrando-se também do rebaixamento. Vide o Obina que virou ídolo no Flamengo enquanto o Vitória ralava na segundona. Livres do técnico e dos jogadores os dirigentes tratam de negociar novos “craques” para reestruturar o time, e colocar algum no bolso. Estão pouco se lixando para o clube, quando muito tentam armar uma vergonhosa virada de mesa. Quem então é verdadeiramente rebaixado?
Acertou quem respondeu o infeliz do torcedor, o único que não pode mudar de clube. Torcedor muda de mulher, de emprego, de casa e até de sexo, mas nunca de time - o único que me lembro que mudou e assumiu foi o Chico Anísio. Arquibaldos e geraldinos é que pagam o pato e são sacaneados pelas torcidas rivais. É justo que logo os que têm amor pelo clube sejam castigados pela incompetência alheia? Qual a solução para corrigir tamanha injustiça futebolística?
Técnico e jogadores que rebaixaram o clube deveriam ser proibidos de atuarem na divisão da qual foram rebaixados. Podem até se transferir para o exterior, mas ficando no Brasil teriam que conquistar no campo o direito de voltar para onde estavam. A proibição ficaria registrada no prontuário de cada um e seria uma cruz que teriam que carregar. Eles iriam espernear, dizer que é ilegal, inconstitucional, etc. Pode até ser, só não é injusto. Mas como nesse país impera a impunidade, nada disso vai acontecer. Só me resta então solidarizar-me com a imensa torcida corintiana na sua dor e torcer por seu breve retorno à primeira divisão.
Janeiro 2008

Codicilo

Orlando, desculpe te dar trabalho mesmo depois de morto, mas como sempre que foi preciso você não me faltou, acabei ficando mal acostumado.

Resolvi te deixar este escrito logo depois da morte do meu avô. Na ocasião, surgiu uma grande celeuma sobre como deveria ser o sepultamento, cada parente especulando a seu jeito sobre a vontade do falecido.

Foi aí que decidi: quando chegar a minha vez não vai ser assim, vou deixar as principais instruções bem explicadinhas num codicilo.

É isto mesmo, Orlando, codicilo: escrito particular com disposições especiais sobre o enterro. Pensou que nunca ia ver um, né?

Você reúne as qualidades necessárias para ser o testamenteiro (ou codicileiro, sei lá!): amigo, advogado, e mais importante, quando teu sangue italiano ferve chega ao fim qualquer discussão.

Para começar, Orlando, que fique bem claro: não desejo ser cremado. Depois iam querer me acusar de estar favorecendo o aquecimento global. Prefiro que meu corpo vá se decompondo. Não deixa de ser uma ajuda para a preservação de outros seres vivos.

E já que vai ser sepultamento, vou enfrentar logo a questão das flores, principal controvérsia no enterro do meu avô.

Sempre fui alérgico, principalmente a pólen, mas ainda prefiro um caixão florido do que uma urna preenchida com véus. Aqueles tecidos deixam o cadáver com um aspecto fantasmagórico e não estou disposto a assombrar ninguém.

Outra coisa, Orlando. Não deixe que gastem muito dinheiro com o caixão. Quanto mais caro, mais pesado. Quanto mais pesado, mais fortes os que vão ter de carregar. Sendo preciso força, o Ted certamente vai se apresentar como voluntário para pegar numa das alças. Orlando, aquilo é um desastrado por natureza. Dê qualquer desculpa, escale o time dos carregadores, mas, por favor, mantenha aquele trapalhão longe de mim.

Falando em proximidade do morto, chegamos a um ponto bem delicado. Como você bem sabe, fui casado várias vezes e vou deixar diversas ex-mulheres.

Tive que refletir bastante até encontrar esta solução: a viúva fica do meu lado quando fecharem a tampa do caixão, as ex-mulheres ocuparão antes o lugar por ordem cronológica decrescente de casamentos, em tempo proporcional às respectivas uniões.

Bem, se aparecer mais alguma já vou estar morto mesmo, mas o que o amigo puder fazer para preservar a imagem do defunto, eu agradeço. Cá entre nós, jogo de cintura não te falta neste campo.

Qualquer serviço religioso é bem-vindo, e levando-se em conta a instrução anterior, poderá vir a ser muito útil para melhorar minha situação no andar de cima.

A turma do botequim você também fica encarregado de controlar. Está bem, Orlando, eu sei que é uma missão quase impossível. Depois que implantaram aquela tradição de beber em homenagem ao companheiro morto, é bem capaz de chegarem embriagados ao enterro.

Vá monitorando o comportamento deles. Se, em algum momento, gritarem juntos: “grande Bahia”, chame a segurança e os expulse imediatamente do local, antes que a boa reputação do falecido seja manchada pelas recordações que poderiam vir à tona.

Para encerrar, Orlando, talvez a mais importante instrução. É provável que apareça alguém para discursar à beira do túmulo. Não vou ser eu a impedir, já está incorporado ao “script” dos enterros em nosso meio.

Assim que terminar o palavrório, deixo para você a incumbência de falar o que eu gostaria que fosse dito:

“Mais um que se vai. Como todo ser humano, tinha virtudes e defeitos. Muitas vezes foi alegre, outras ficou triste. Conheceu o sucesso e o fracasso. Em suma, viveu. Hoje está sendo muito lembrado. Com o tempo, a lembrança vai esmaecer até que só reste uma imagem desbotada de fotografia ou um nome na árvore genealógica. Se a maioria lembrar dele com um sorriso nos lábios, sua existência não terá sido em vão”.

Arthur Narciso - Janeiro de 2008