sábado, 22 de setembro de 2007

Pau que nasce torto...

Carlos Melo

Era uma árvore alta, frondosa, bonita e viçosa, com um tronco enorme e vivia feliz e tranqüila na Floresta Amazônica. E eu era parte desse tronco. Eu era esse tronco. Certo dia, madeireiros inescrupulosos derrubaram-na junto com muitas outras, em mais um ato ilegal de desmatamento. A partir daí, minha vida mudou. E mudou para pior. Como se diz por aí: se transformou num inferno.

Alguns de meus irmãos, partes daquele tronco, se converteram em bonitos móveis de estilo e hoje enfeitam os aposentos de luxuosas residências de várias partes do mundo. Levam uma vida de fazer inveja a qualquer pedaço de pau jogado por aí. Outros sustentam telhados de modernas mansões, muitas delas, freqüentadoras das páginas de revistas especializadas. Olha só que baita responsabilidade ! Outros pedaços da árvore valorizam o piso interno de casas de famosos, requintando o ambiente onde desfilam elegantes damas de nossa sociedade.

Pois bem. A mim, esquecido pela sorte, coube o castigo de estar entre as aparas de meus irmãos, isto é, fazer parte das sobras de madeiras, cujo destino irremediável seria o lixo. Fizeram de mim, então, talvez por caridade, um simples palito. É bem verdade que meu destino poderia ter sido virar um palito de fósforo ou o palito de um picolé qualquer de segunda categoria. Mas isso não faria muita diferença. Sou hoje, apenas e tão somente, um palito de dentes.

Ao contrário de muitos derivados de troncos, meu local de trabalho é a boca do povo. Isso mesmo: não sou fofoca, mas vivo de boca em boca. Não preciso nem dizer que as bocas que freqüento não são as mais saudáveis. Claro. Bocas limpas e bem tratadas não precisam de mim. Obrigam-me a futucar cáries mal cheirosas e cheias de detritos. Cismaram que tenho que limpar essas imundas cavidades bucais. Dizem que é uma missão. Os dentistas me detestam; de dependesse deles, minha espécie estaria em extinção há séculos.

Houve um tempo em que algumas donas de casa, com certeza por não terem o que fazer, inventaram de enfiar em mim pedaços de pimentão, cenoura, queijo e sei lá mais o quê. Depois me espetavam num repolho e saiam me oferecendo às pessoas com o nome de “sacanagem”. Ora, não bastassem as sacanagens que faziam comigo me submetendo a trabalhos ridículos, resolveram dizer que eu era a própria sacanagem ... Foi demais. Felizmente isso saiu de moda. Foi uma fase negra da minha vida.

Querem saber de outra que fizeram comigo ? A namorada do Popeye, todo mundo sabe, é mais feia que uma fratura exposta, não é verdade ? Pois não é que botaram nela o apelido de Olívia Palito ! Quer dizer, para o bom entendedor, eu me tornei uma referência mundial de feiúra. Sei que não sou nenhum Gianechini, mas também não precisavam me tripudiar, pô ... É assim que me tratam, sempre me submetendo a situações de vexames, constrangimentos, humilhações ... Tem até pessoas que me usam como cotonete: envolvem um algodão numa de minhas pontas e aí esfregam em suas feridas fétidas ou então enfiam-me nos ouvidos de onde saio todo lambuzado de cera para resolver seus problemas de higiene. Tudo sem o menor respeito ou consideração. É assim: para mim só tarefas ridículas, como, furar bolos, jogar “palitinhos” (eta joguinho imbecil...), espetar azeitonas, coisas desse tipo. E em todas essas ocasiões, sou usado e descartado. Não me aproveitam para absolutamente nada. A rotina é me usar, me quebrar e me arremessar na lixeira mais próxima ou mesmo no chão imundo. Uma completa falta de respeito.

Jamais me encarregam de uma tarefa importante. Sou mesmo um João Ninguém. Tão desvalorizado que sou vendido aos punhados por um preço inexpressivo. Nunca, nem uma vez sequer, influenciei no preço da cesta básica. Isso é humilhante !

Talvez vocês estejam achando meu papo piegas ou lamuriante. Mas vejam se não tenho razão. Outro dia, a patroa gritou para empregada: “Maria, achei uma barata morta embaixo do sofá. Vem limpar, depressa !...” Sabem o que a desclassificada da Maria teve a audácia de fazer ? Sem pensar duas vezes, me pegou dentro do armário, foi até a falecida, me espetou no inseto nojento e jogou – eu e ela - na lata de lixo. Deixei essa vida espetando uma barata. Pode haver final de vida mais triste e indigno do que esse ? Ninguém merece !...

2 comentários:

Fabio Bastos disse...

Carlos

Brilhante seu texto, a começar pelo título. Vc abordou de maneira bem humorada o drama do palito. Boa estréia no blog.

Sds
Fabio

Rosária Farage disse...

Carlos,

Seu texto é bastante criativo. Começou árvore no Amazonas e acabou palito no lixo. Seria trágico se não fosse cômico.

Abs.

Rosária.