sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A Marca

Ana Lúcia Prôa
Foi difícil tomar aquela atitude. Mas, um dia, encheu-se de coragem e arrancou de seu dedo a aliança que insistia em lembrá-la dos muitos e muitos anos em que se dedicara a um só. Ela estava lá em seu dedo apenas como enfeite fazia uns seis, sete, oito meses... Perdera as contas. Seu homem saíra de casa cansado da rotina, foi o que disse. E ela achou que seria passageiro. Pra que tirar a aliança então? Ele vai voltar.
O aro dourado em seu anelar era o símbolo da esperança. Olhava-o sempre com a certeza do retorno daquele a quem amava. Ou a quem se acostumara.
Não demorou muito para vê-lo desfilando com uma outra. Tipinho interessante, tão diferente dela. Tão cheia de vida! E ela ali... Como vela apagada com cera seca escorrida.
Ainda assim, não tirou a aliança. Fazia parte de seu corpo. Retirá-la seria tão violento quanto uma amputação. Não se sabia mais onde acabava a aliança e onde começava a pele. Era tudo uma coisa só.
Numa manhã, abriu os olhos e a primeira coisa que viu, pousada sobre seu travesseiro, foi a aliança-dedo. Esticou ainda mais o olhar e viu o travesseiro dele vazio. Por que ainda teimava em colocá-lo na cama? Sentiu náuseas. Levantou-se e o enjôo só fez piorar. Pensou em tomar um remédio, mas, a cada vez que olhava para sua mão esquerda, seu mal-estar se acentuava. Não era caso de remédio...
Foi aí que a coragem lhe subiu à cabeça, pegando um atalho pelo lado direito do peito, para não esbarrar no coração. Havia chegado a hora. Com os dedos da outra mão, começou a puxar aquele elo que não a ligava a mais ninguém. O elo insistia em ficar. Mas ela estava resoluta. Nada que um pouco de água e sabão não resolvessem. E foi com alívio que se deu a extirpação. O enjôo passou.
Mas nem deu tempo de comemorar a vitória sobre seus sentimentos. Seus olhos se arregalaram de pavor ao ver que, em lugar da aliança, restou em seu dedo um sulco. Profundo. Quase tão profundo quanto o sulco deixado por ele em seu íntimo.
Esfregou, esfregou, esfregou. Massageou toda aquela cavidade circular deixada pela aliança, mas nada de desaparecer. Ela era impotente perante a força daqueles anos e anos passados com alguém. Impossíveis de se apagar.
Passaram-se dias, semanas, meses... Como tatuagem, lá permanecia a marca de sua aliança.
Cansada de olhar para o símbolo do que não existia mais, resolveu colocar uma prótese: um belo anel com uma tremenda ametista se fixou por sobre o sulco.
Não o tirava para dormir. Não o tirava para tomar banho. A aderência foi total, sem rejeição da pele.
Começou a se sentir leve. Sua chama voltou a se acender. Decidiu se amar.
Um dia, resolveu arrancar a prótese. Não precisava mais dela. E que surpresa: a pele havia se regenerado. O sulco se preencheu de alegria de viver. As únicas marcas em seu corpo, agora, eram duas linhas de expressão no rosto que surgiam a toda hora, a cada novo sorriso.

11 comentários:

Fabio Bastos disse...

Ana
Um belo texto, envolvente e prende a atenção do leitor. Mais para conto do que para crônica, se é que entendi a diferença.
Martha Medeiros que se cuide, Ana Proa vem aí!
Bjs
Fabio

Paulo Borchert disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Paulo Borchert disse...

Ana,
A primeira coisa que fiz foi retirar a minha aliança e ver se tinha o mesmo sulco.
Tem! Mas tenho a sorte e o prazer de ainda ter o motivo do sulco ao meu lado, há 35 anos.
Belo texto muito emotivo e criativo.

Arthur disse...

Ana,
Tocante, sem resvalar para o piegas.
Para quem já teve que tirar aliança, chegou a dar um aperto no peito...
Aquele abraço,
Arthur

Carlos Augusto disse...

Ana,
Arthur já disse tudo que eu teria a dizer...
Abraços,
Carlos Augusto

Therezinha Mello disse...

Querida Ana,
Vc retrata a alma feminina com muita competência e sensibilidade. Gostei muito.
Bjs, The

Therezinha Mello disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Therezinha Mello disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria Teresa disse...

Oi Anusca,
reforço minha opinião sobre a sua crônica, e tento seguir os passos,
para enviar comentários, segundo sua orientação.
Lá vou eu.
beijocas oficineiras.

Maria Teresa disse...

Afinal!
Fui ou não fui? Eis a questão!
DESCOBRI!!!!!!!!!!!!!!
Eu estou lá embaixo!
Você é um GÊNIO!
Obrigadíssima.

Carlos Melo disse...

Oi Ana,
Mais um excelente texto. Um retaro da vida. É inevitável lembrar de pessoas conhecidas/amigas que, certamente, "brigaram" com suas marcas. Parabéns.