quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Codicilo

Orlando, desculpe te dar trabalho mesmo depois de morto, mas como sempre que foi preciso você não me faltou, acabei ficando mal acostumado.

Resolvi te deixar este escrito logo depois da morte do meu avô. Na ocasião, surgiu uma grande celeuma sobre como deveria ser o sepultamento, cada parente especulando a seu jeito sobre a vontade do falecido.

Foi aí que decidi: quando chegar a minha vez não vai ser assim, vou deixar as principais instruções bem explicadinhas num codicilo.

É isto mesmo, Orlando, codicilo: escrito particular com disposições especiais sobre o enterro. Pensou que nunca ia ver um, né?

Você reúne as qualidades necessárias para ser o testamenteiro (ou codicileiro, sei lá!): amigo, advogado, e mais importante, quando teu sangue italiano ferve chega ao fim qualquer discussão.

Para começar, Orlando, que fique bem claro: não desejo ser cremado. Depois iam querer me acusar de estar favorecendo o aquecimento global. Prefiro que meu corpo vá se decompondo. Não deixa de ser uma ajuda para a preservação de outros seres vivos.

E já que vai ser sepultamento, vou enfrentar logo a questão das flores, principal controvérsia no enterro do meu avô.

Sempre fui alérgico, principalmente a pólen, mas ainda prefiro um caixão florido do que uma urna preenchida com véus. Aqueles tecidos deixam o cadáver com um aspecto fantasmagórico e não estou disposto a assombrar ninguém.

Outra coisa, Orlando. Não deixe que gastem muito dinheiro com o caixão. Quanto mais caro, mais pesado. Quanto mais pesado, mais fortes os que vão ter de carregar. Sendo preciso força, o Ted certamente vai se apresentar como voluntário para pegar numa das alças. Orlando, aquilo é um desastrado por natureza. Dê qualquer desculpa, escale o time dos carregadores, mas, por favor, mantenha aquele trapalhão longe de mim.

Falando em proximidade do morto, chegamos a um ponto bem delicado. Como você bem sabe, fui casado várias vezes e vou deixar diversas ex-mulheres.

Tive que refletir bastante até encontrar esta solução: a viúva fica do meu lado quando fecharem a tampa do caixão, as ex-mulheres ocuparão antes o lugar por ordem cronológica decrescente de casamentos, em tempo proporcional às respectivas uniões.

Bem, se aparecer mais alguma já vou estar morto mesmo, mas o que o amigo puder fazer para preservar a imagem do defunto, eu agradeço. Cá entre nós, jogo de cintura não te falta neste campo.

Qualquer serviço religioso é bem-vindo, e levando-se em conta a instrução anterior, poderá vir a ser muito útil para melhorar minha situação no andar de cima.

A turma do botequim você também fica encarregado de controlar. Está bem, Orlando, eu sei que é uma missão quase impossível. Depois que implantaram aquela tradição de beber em homenagem ao companheiro morto, é bem capaz de chegarem embriagados ao enterro.

Vá monitorando o comportamento deles. Se, em algum momento, gritarem juntos: “grande Bahia”, chame a segurança e os expulse imediatamente do local, antes que a boa reputação do falecido seja manchada pelas recordações que poderiam vir à tona.

Para encerrar, Orlando, talvez a mais importante instrução. É provável que apareça alguém para discursar à beira do túmulo. Não vou ser eu a impedir, já está incorporado ao “script” dos enterros em nosso meio.

Assim que terminar o palavrório, deixo para você a incumbência de falar o que eu gostaria que fosse dito:

“Mais um que se vai. Como todo ser humano, tinha virtudes e defeitos. Muitas vezes foi alegre, outras ficou triste. Conheceu o sucesso e o fracasso. Em suma, viveu. Hoje está sendo muito lembrado. Com o tempo, a lembrança vai esmaecer até que só reste uma imagem desbotada de fotografia ou um nome na árvore genealógica. Se a maioria lembrar dele com um sorriso nos lábios, sua existência não terá sido em vão”.

Arthur Narciso - Janeiro de 2008

6 comentários:

Beatriz disse...

Arthur,

Fiquei um tempo sem ler seus textos e, te digo, me impressionou como você aprimorou o estilo e o humor. Me deliciei com o texto, até me inspirou para escrever um sobre o meu funeral - se é que quero ter um - posso?

Ana Lúcia Prôa disse...

Arthur, vc sabe que sou sua fã! Gosto do seu estilo e admiro muito seu domínio do idioma (o que, a meu ver, deveria ser uma obrigação para os advogados e afins, mas vc sabe que não é bem assim que a banda toca!!!). Obrigada por ter me ensinado mais uma palavra! Vou tratar de preparar meu codicilo (já o tinha anunciado verbalmente entre os meus, agora vou deixar por escrito!).
BEIJOS!!!!!

Fabio Bastos disse...

Arthur
Ótima crõnica. Um texto de humor negro que me lembrou Machado de Assis em Memórias Póstumas. Ele dedica o livro ao verme que primeiro roer as frias carnes de seu cadáver.
Continue escrevendo e nos presenteando com seus textos
Abs
Fabio

Therezinha Mello disse...

Caríssimo Arthur,
Você e seu estilo inconfundível. Beleza de texto! Veio matar nossa saudade.
Abração, The

Carlos Melo disse...

Artur, o texto, por ser bem escrito, é muito agradável de ser lido. Além do mais, nos leva a refletir sobre nossos próprios codicilos. Parabéns.

Paulo Borchert disse...

Caro Arthur,
Grande crônica, cômica sem ser trágica, pois não há óbito nenhum.
Pergunta de leigo a um nobre Juiz:
Codicilo tem valor legal?