terça-feira, 20 de maio de 2008

A PITADA DE INVEJA

A PITADA DE INVEJA



Perdemos Zélia Gattai.

Considerando o ciclo natural da vida, a morte de um “imortal” não chega a ser uma coisa muito surpreendente. Afinal, a turma do fardão, em sua grande maioria, é composta de literatos de idade avançada e, portanto, não é de se estranhar a partida desses nossos heróis. Até porque, o ingresso na ABL exige, além da comprovada competência, uma bagagem significativa de trabalho. E isso leva tempo.

Mas quero falar de Zélia.

Não da Zélia que durante uma vida se dedicou a falar de Jorge Amado. Bajular e badalar Jorge. A prioridade sempre foi promover Jorge. Não tinha a menor importância colocar-se num segundo plano, fora de cena, aparentando submissão e falta de opinião, o que não era o caso. Usava a serenidade e a doçura de sua voz como meio para elevar o nome de Jorge.

Não da Zélia, mulher, mãe e dona-de-casa, que não se cansava e não perdia oportunidades para falar da Bahia, de sua casa, do marido Jorge e de suas performances pessoais e profissionais e, de reboque, dos filhos Paloma e João Jorge.

Não da Zélia, militante política, de fantástica memória e inesgotável contadora de histórias.

Nada disso. Quero falar da Zélia, a descobridora de meu talento. Me desculpem a presunção, mas que se dane a modéstia.

Desde cedo, gostei de ler e escrever. Um cacoete tal e qual qualquer outro. O tempo passava e eu lia, escrevia, não gostava e, logo, logo, produzia dezenas de bolinhas de papel cujo destino era as latas de lixo. Até que, por volta de 1980, caiu em minhas mãos o livro “Anarquistas, graças a Deus”, da Zélia. Os acontecimentos que povoaram sua infância junto aos pais imigrantes italianos, fascinaram-me. Talvez, não tanto pela essência da história em si. Fiquei impressionado pela forma de narrar: simples, direta, sem rodeios ou sofisticações. Era como se estivéssemos, eu e ela, tomando água de coco e conversando num final de tarde na varanda da casa do Rio Vermelho. A conversa, ou melhor, a leitura fluía, banal, gostosa, natural, sem nenhuma necessidade de interrupções “para entender o que ela quis dizer”. Com aquele trabalho, Zélia iniciava sua carreira de escritora, já com mais de sessenta anos. Foi quando senti a tal pitada de inveja. Era assim, exatamente daquele jeito que eu queria escrever.

Finda a leitura, pensei: “Então é possível se escrever como se fala, sem circunlóquios (ela jamais usaria essa palavra), sem frases que suscitem dúvidas de interpretação, enfim, escrever como a Zélia escreve ?!...”

Minha cara Ana Proa, oficineira das melhores, tinha eu naquela época, mais ou menos a sua idade. Naquele dia, fiquei convencido (hummm ! esta expressão me lembra alguém!..) de que também era capaz. No meu caso, queria escrever pelo prazer de escrever, “sem fins lucrativos”. Esse era o meu horizonte.

Se um dia eu for entrevistado no Programa do Jô, direi com o maior prazer que “foi Zélia quem impulsionou minha carreira”. É assim que as celebridades falam.

E Zélia partiu.

Em minha estante, seus livros, agora mais do que nunca, continuarão em lugar de destaque, junto a Machado, Sabino, Nelson, Veríssimo e Novaes (puxada maior, impossível !!). Gosto de todos, mas a ela dispenso um carinho especial pelo bem que ela me fez e continua fazendo.

Fico imaginando como seria bom ler uma crônica de Zélia falando das coisas do Céu. Talvez dissesse, com a maior simplicidade do (outro) mundo: “São Pedro acabou de passar por aqui. Achei ele bem mais magro do que a imagem que eu tinha lá em casa. Mas podem ter certeza: a simpatia é a mesma !”



CARLOS MELO
Maio de 2008

7 comentários:

Fabio Bastos disse...

Carlos

Li quase tudo do Jorge Amado, mas nada da Zélia. Talvez por achar que ela só fez sucesso como escritora por ser mulher do Jorge. Depois da sua crônica e a da Ana fiquei curioso e vou procurar algo dela para ler.
Apareça na Oficina Informal, vc faz falta.
Abs
Fabio

Ana Lúcia Prôa disse...

Querido Carlos!!!!

Adorei sua crônica sobre a Zélia! Não poderia ser diferente... Afinal, tive o prazer de ter meu nome citado - e elogiado, uhuuuu! – num texto que fala sobre esta mulher tão especial, que foi Zélia (Fábio, ela foi uma grande contadora de histórias, num estilo completamente diferente do marido. Brilhou pq merecia mesmo...).

Li "Anarquistas" aos 14 anos (mais precisamente, em 1983 - faça as contas, Carlos, pra ver se vc tinha mesmo a minha idade atual qd leu este livro pela primeira vez. Creio que não, rsrsrs... Devia ser bem mais moço..). Foi uma excelente professora de português que tive (uma das raras que nos passava literatura contemporânea de primeira, e não só - sem desmerecer - Machado de Assis e cia.) quem mandou a turma ler. Poxa, foi uma surpresa tão agradável, que a partir dali devorei tudo o que Zélia escreveu. Foi amor à primeira lida!

Bem, meu caro Carlos, o fato é que, lendo sua crônica agora, me fez lembrar ainda mais de Zélia... Não é à toa que sempre gostei de suas crônicas: tão repletas de carisma, emoção e singeleza, assim como os livros da querida Zélia. Siga por este caminho - mas um caminho só seu! - e vá em frente rumo às delícias da literatura.

Beijos grandes e com saudades,

Ana Prôa

Paulo Borchert disse...

Carlos, gostei muito de sua crônica, em forma de homenagem à Zélia.Eu também li Anarquistas e gostei muito.
Apareça na Oficina Informal, que mesmo sentindo a ausencia do Mestre Novaes, estamos tocando, tentando não deixar a peteca cair. Também estamos tentando editar o livro 4. Você, Ana, Raquel, Pedro e outros fazem muita falta. apareçam, é "de grátis"!!

Abraços
Paulo

Paulo Borchert disse...

Carlos,
Achei sua crônica muito legal. Um comentário em forma de homenagem à Zélia.
Apareça na Oficina Informal, pois mesmo com a ausência sentida do mestre Novaes, nós estamos tocando, tentando não deixar a peteca cair. Você faz falta, assim como a Ana Proa.
Abraços
Paulo Borchert

Paulo Borchert disse...

Carlos,
Achei sua crônica muito legal. Um comentário em forma de homenagem à Zélia.
Apareça na Oficina Informal, pois mesmo com a ausência sentida do mestre Novaes, nós estamos tocando, tentando não deixar a peteca cair. Você faz falta, assim como a Ana Proa.
Abraços
Paulo Borchert

Maria Teresa disse...

Oi Carlucho,
maravilhosa, e merecidíssima, homenagem. Zélia também me inspira e emociona.
Que tal nos fazer companhia na Oficina Informal?
Você está fazendo falta!
Um abraço,
Mª Teresa

Therezinha Mello disse...

Cacá,
Gosto tb muito de ler a Zelia e admiro-a pelo "conjunto da obra". A crônica lhe fez justa homenagem. É bom qdo o escritor consegue inspirar alguém. Muito boa!
Bjs,
The