quinta-feira, 9 de julho de 2009

Hoje o Doutor Não Vem

Pelos anos sessenta, no Rio de Janeiro, ainda contávamos com os chamados médicos de família. Eram, nos bairros e pequenas cidades, a referência que se tinha para tratar, desde unha encravada, até pneumonias ou coisas mais graves. O Doutor era o primeiro a ser consultado e era dele, sempre, a última palavra. Boa parte das explicações de que precisávamos para tocar a vida, nos eram trazidas por ele. Da mesma forma, também boa parte dos alentos, não só para o corpo, como também para o espírito.

Quando criança, além do físico franzino, eu choramingava por qualquer motivo, em casa ou na escola. Fortificantes e estimulantes de apetite me foram prescritos. Garranchos, decifráveis somente pelo farmacêutico, aumentavam grandemente a importância desses medicamentos. O choro sem motivo foi considerado por minha mãe “bobagem de criança”, diagnóstico confirmado pelo Dr. João. Seu modo, ao mesmo tempo firme e benevolente, transformava-o em psicólogo, figura que, àquela altura, não fazia parte do nosso universo.

Dr. João vestia-se de terno escuro e tinha voz forte e grave. O consultório ficava ao lado de uma farmácia onde, no balcão, minha mãe pagava a consulta e recebia uma ficha. Eu me distraía observando potes de Glostora, envelopes de Melhoral e frascos de Biotônico Fontoura expostos na vitrine. A seguir, a sala de espera. Aí começava meu suplício. Num determinado momento, ouviria uma voz aterrorizante: “-Boa tarde!”. E o Dr. João adentraria ameaçador. Atravessaria a sala de espera com sua maleta, passos firmes, e entraria no consultório fechando a porta atrás de si.

Enquanto esperava esse momento, eu rezava para que alguém dissesse: “- Hoje o Doutor não vem!”. Ficava imaginando minha mãe levantando-se contrariada, levando-me pela mão de volta pra casa. Eu, feliz, livre da consulta que me amedrontava. O fato é que tinha um medo enorme do Dr. João. Na maioria das vezes o resultado da visita era uma série de injeções que eu detestava tomar. Além do mais, a voz grave e forte tinha o poder de me assustar e muito. Mas ele nunca faltou. Nunca. Com o tempo, sem opção e a contragosto, acabei me acostumando com a idéia de vê-lo periodicamente. A vida me fez perdê-lo de vista, apesar de guardá-lo nitidamente na memória.

Os médicos de família são hoje muito raros. Durante várias décadas, no entanto, pude manter esse privilégio. Um novo Doutor, o cardiologista Jaime Freitas, tornou-se para nós essa espécie de amigo, conselheiro e profissional confiável, competente. Hoje cedo, mal abri o jornal, soube de seu falecimento. Soube, tristemente, que o velho Jaime se foi. É curioso, mas o primeiro pensamento que me veio à cabeça foi a frase que tanto desejei ouvir na minha infância, no antigo consultório do Dr. João: “ - Hoje o Doutor não vem!”. Constatei que, desta vez, se tornou verdade. Hoje, é certo que o Doutor não vem. E tudo o que eu queria era que alguém me dissesse: “ – Ele vem. O Doutor está atrasado. Mas ainda vem.”.

4 comentários:

Rachel Bassan disse...

The,
Sua crônica me emocionou duplamente, até porque Jayme Barros Freitas foi um cardiologista amigo e cliente muito especial. Pessoa das mais elegantes e queridas que já conheci.
É, amiga,este doutor não vem mais, mas certamente está cuidando muito bem do "povo lá de cima".
Com carinho,
Rachel Bassan

Fabio Bastos disse...

Uma crônica com a chancela Theresinha Melo. Bem narrada, envolvente e com um desfecho surpreendente.
Me fez lembrar meu médico de família que era o próprio farmacêutico.
Valeu The
Fabio

Maria Teresa disse...

Oi The,
esta crônica é a prova de que a OFICINA (assim mesmo toda em maiúsculas e sem adjetivo) não vai acabar nunca.
Sensível, envolvente, linda!
Parabéns,
aria Teresa

Paulo Borchert disse...

The,
Linda crônica, relembrando a figura do médico de família, tão fora de moda nos dias de hoje, infelizmente. Na época do dr.João, era só estetoscópio, termômetro e aparelho de pressão. O resto era muita sabedoria e intuição. Hoje, com raras excessões, o doutor, pede uma lista sem fim de exames, e pouco olha para o paciente.