Pelos anos sessenta, no Rio de Janeiro, ainda contávamos com os chamados médicos de família. Eram, nos bairros e pequenas cidades, a referência que se tinha para tratar, desde unha encravada, até pneumonias ou coisas mais graves. O Doutor era o primeiro a ser consultado e era dele, sempre, a última palavra. Boa parte das explicações de que precisávamos para tocar a vida, nos eram trazidas por ele. Da mesma forma, também boa parte dos alentos, não só para o corpo, como também para o espírito.
Quando criança, além do físico franzino, eu choramingava por qualquer motivo, em casa ou na escola. Fortificantes e estimulantes de apetite me foram prescritos. Garranchos, decifráveis somente pelo farmacêutico, aumentavam grandemente a importância desses medicamentos. O choro sem motivo foi considerado por minha mãe “bobagem de criança”, diagnóstico confirmado pelo Dr. João. Seu modo, ao mesmo tempo firme e benevolente, transformava-o em psicólogo, figura que, àquela altura, não fazia parte do nosso universo.
Dr. João vestia-se de terno escuro e tinha voz forte e grave. O consultório ficava ao lado de uma farmácia onde, no balcão, minha mãe pagava a consulta e recebia uma ficha. Eu me distraía observando potes de Glostora, envelopes de Melhoral e frascos de Biotônico Fontoura expostos na vitrine. A seguir, a sala de espera. Aí começava meu suplício. Num determinado momento, ouviria uma voz aterrorizante: “-Boa tarde!”. E o Dr. João adentraria ameaçador. Atravessaria a sala de espera com sua maleta, passos firmes, e entraria no consultório fechando a porta atrás de si.
Enquanto esperava esse momento, eu rezava para que alguém dissesse: “- Hoje o Doutor não vem!”. Ficava imaginando minha mãe levantando-se contrariada, levando-me pela mão de volta pra casa. Eu, feliz, livre da consulta que me amedrontava. O fato é que tinha um medo enorme do Dr. João. Na maioria das vezes o resultado da visita era uma série de injeções que eu detestava tomar. Além do mais, a voz grave e forte tinha o poder de me assustar e muito. Mas ele nunca faltou. Nunca. Com o tempo, sem opção e a contragosto, acabei me acostumando com a idéia de vê-lo periodicamente. A vida me fez perdê-lo de vista, apesar de guardá-lo nitidamente na memória.
Os médicos de família são hoje muito raros. Durante várias décadas, no entanto, pude manter esse privilégio. Um novo Doutor, o cardiologista Jaime Freitas, tornou-se para nós essa espécie de amigo, conselheiro e profissional confiável, competente. Hoje cedo, mal abri o jornal, soube de seu falecimento. Soube, tristemente, que o velho Jaime se foi. É curioso, mas o primeiro pensamento que me veio à cabeça foi a frase que tanto desejei ouvir na minha infância, no antigo consultório do Dr. João: “ - Hoje o Doutor não vem!”. Constatei que, desta vez, se tornou verdade. Hoje, é certo que o Doutor não vem. E tudo o que eu queria era que alguém me dissesse: “ – Ele vem. O Doutor está atrasado. Mas ainda vem.”.
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4 comentários:
The,
Sua crônica me emocionou duplamente, até porque Jayme Barros Freitas foi um cardiologista amigo e cliente muito especial. Pessoa das mais elegantes e queridas que já conheci.
É, amiga,este doutor não vem mais, mas certamente está cuidando muito bem do "povo lá de cima".
Com carinho,
Rachel Bassan
Uma crônica com a chancela Theresinha Melo. Bem narrada, envolvente e com um desfecho surpreendente.
Me fez lembrar meu médico de família que era o próprio farmacêutico.
Valeu The
Fabio
Oi The,
esta crônica é a prova de que a OFICINA (assim mesmo toda em maiúsculas e sem adjetivo) não vai acabar nunca.
Sensível, envolvente, linda!
Parabéns,
aria Teresa
The,
Linda crônica, relembrando a figura do médico de família, tão fora de moda nos dias de hoje, infelizmente. Na época do dr.João, era só estetoscópio, termômetro e aparelho de pressão. O resto era muita sabedoria e intuição. Hoje, com raras excessões, o doutor, pede uma lista sem fim de exames, e pouco olha para o paciente.
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