Therezinha Mello
(Inspirada na obra A vida como ela é, do mestre Nelson Rodrigues)
O carro de Jaciara tinha enguiçado perto da Quinta da Boa Vista e alguém indicou a oficina mecânica do Manoel para resolver o problema. Jaciara andou uns dois quarteirões e, quando chegou, Manoel já estava fechando o estabelecimento. Ela insistiu e ele acabou não resistindo aos apelos da cliente, embora já passasse das dezoito horas. Era uma baiana vistosa, falante e desinibida, usava um vestido colado no corpo, apesar de possuir alguns quilos acima do que seria, em tese, o peso ideal. Brigava diariamente com a balança, mas sem perder a pose em hipótese alguma.
Manoel, solteirão, já perto dos cinqüenta, era esperto com os negócios, mas ingênuo com as mulheres. Seu pai lhe deixara a velha oficina de clientela fiel, onde todos os dias trabalhava com Matias, seu ajudante e amigo, levando o que se poderia chamar de uma vida tranqüila. Tinha um inexplicável fraco pelas baianas. Ainda moço tinha ficado noivo de uma, que acabou fugindo com outro para o sul, deixando-o com enxoval, casa alugada e o bairro inteiro para explicar o que tinha acontecido. Nunca mais tinha pensado em casar.
Consertou o carro de Jaciara sem maiores dificuldades, mas não aceitou o pagamento. Disse que “ficaria por conta da casa”. Ela, simulando constrangimento, convidou-o para tomar uma cerveja. Manoel aceitou de imediato, encantado que estava com aquele maldito sotaque baiano, que já tinha sido sua perdição uma vez na vida. Na despedida a sedutora Jaciara agradeceu por tudo e acabaram marcando novo encontro. Ela beijou-lhe demoradamente a bochecha avermelhada, menos pelo álcool do que pela timidez.
Em pouco tempo estavam morando juntos no pequeno apartamento de Manoel, no Engenho Novo. Ele era feliz na sua nova rotina, entre a oficina e os carinhos de Jaciara. Ela tinha lá umas manias, que deviam mesmo ser coisas de mulher. Era ousada nos decotes, gostava de uns shortinhos muito curtos e, se ele fazia alguma observação, perguntava dengosa se a estava achando feia, se não gostava mais da mulherzinha dele, fazendo cara de zanga. A essa altura costumava chamá-lo de “meu rei” e ele, arrependido, pedia perdão. Jurava não mais implicar com aquele jeito dela, que no fundo adorava.
Um dia recebeu um telefonema na oficina. O Matias avisou: “-Vem logo, que é de Portugal!”. Quando desligou Manoel estava atônito. Seu único tio estava muito mal de saúde e queria lhe ver. Ele precisaria ir a Portugal. Mas era difícil deixar a oficina assim, de uma hora para outra e, pior ainda, deixar Jaciara sozinha. Matias tentava acalmá-lo. “-Vai homem! Eu cuido da oficina pra você!”.
Manoel estava nervoso. Quando chegou em casa, contou a estória à mulher. Queria que ela fosse junto, só assim ele iria. Para sua surpresa, Jaciara incentivou-o a ir sozinho. Disse que era caso de vida ou morte, coisa de família e que, além do mais, ela poderia ajudar ficando na oficina, tomando conta do caixa. Olhando Manoel nos olhos, disse: “- Meu rei, meu rei, o olho do dono é que engorda o boi!”.
Manoel hesitou, mas ela o convenceu. Em uma semana comprou passagem e fez a mala. Após despedida chorosa, partiu para a santa terrinha, deixando a esposa com um ar de felicidade maior do que ele poderia esperar. Vinte dias depois, Manoel voltou. Não podia viver nem mais um dia sem a sua Jaciara. Resolveu fazer uma surpresa à mulher e retornar ao Brasil sem avisá-la. Queria matar a saudade daquele corpo roliço e moreno que o enlouquecia de prazer.
Chegou ao apartamento do Engenho Novo e, sem tocar a campainha, abriu a porta num gesto afobado. Numa das mãos um imenso ramo de flores. Quando se deu conta do que via, quase perdeu a fala. Os cômodos estavam completamente vazios. Chamou pela mulher desesperado e só ouviu um eco. Pelas paredes as marcas dos quadros que haviam sido retirados. Jaciara tinha levado tudo: todos os móveis, o aparelho de ar condicionado, as roupas, a cama, tudo.
No meio do quarto apenas o travesseiro de Manoel e um bilhete. “-Meu rei, cuide de nosso ninho. Vou embora com Matias para Salvador. Não te mereço mais!”. Manoel ajoelhou-se no chão e, com o rosto enfiado no travesseiro, chorava e dizia: “-Volta, Jaciara, volta que eu te amo, mulher!”.
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8 comentários:
Olá Terê,
a crônica está ótima!
Tão boa que me senti na oficina,
ouvindo ela ser lida por você.
Parabéns!
Maria Teresa
Olá Terê,
a crônica está ótima!
Tão boa que me senti na oficina,
ouvindo ela ser lida por você.
Parabéns!
Maria Teresa
Pobre Manoel Teresinha! Ficou sem mulher, sem ajudante da oficina e sem roupas. Só lhe sobraram um travesseiro e um par de chifres! Cruel, bem ao estilo de Nelson Rodrigues!
Espero que a oficina que a Teresa se sentiu seja a de crônicas, e não a do Manoel, hehehe...
Terezinha
Um texto bem rodrigueano que prende a atenção do leitor. Também inspirado pelo NR fiz um conto parecido que vou colocar no blog.
Parabéns e bom carnaval.
bjs
Fabio
Therezinha,
Uma crônica muito bem temperada. Não é à toa que protagonizada por uma baiana.
Arthur
The,
Por que você fez isso com o pobre do Manoel ? Um par de chifres no melhor estilo Nelson Rodrigueano.
Muito boa. Parabéns.
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