Carlos Melo
Ela vivia perambulando pelas ruas do bairro. Diariamente, de segunda a domingo. Negra, suja e maltrapilha. Os cabelos ensebados denunciavam que não viam água há séculos. Entretanto, quem a olhasse com mais atenção perceberia que escondida embaixo daquela sujeira humana havia uma mulher de traços marcantes, lábios grossos e nariz afilado. Quase se poderia afirmar que, se a submetessem a uma faxina geral com muita água e sabão e a um “banho de loja” surgiria, como que por encanto, uma negra bonita, talvez interessante, talvez até charmosa.
Sempre com calçados velhos e tortos, carregava invariavelmente um pacote sob o braço. Envolto em inúmeras folhas de jornais amassados, ela o ajeitava nervosamente o tempo todo. Transportava aquele embrulho com preocupação e com tamanho cuidado que dava a impressão que guardava algo de valor inestimável, o qual protegia e defendia com unhas e dentes. Não se afastava do pacote em hipótese nenhuma. Nem quando parava para se alimentar. Nunca ninguém conseguiu saber o que havia dentro daquele monte de jornais desarrumados. Na outra mão, conduzia um saco preto, imundo, de lona ou algo parecido. Nesse saco ela enfiava coisas que catava nas latas de lixo. Era inútil tentar saber o que lhe interessava. Pegava garrafas, mas não todas; recolhia latas, mas não qualquer uma; vidros, só alguns. Jornais e certos objetos inservíveis também eram colecionados. Cada peça recolhida era analisada demoradamente antes de ser selecionada e ir para o saco.
Sua via sacra diária se resumia em recolher coisas do lixo e tomar conta do embrulho. Bastante conhecida no pedaço, alimentava-se com facilidade através de doações dos moradores. Não ameaçava ninguém sob nenhum aspecto. O semblante era sempre triste. Pouco falava e nunca sorria. Vagava sossegada pelas ruas durante todo o dia, futucando cuidadosamente as caçambas, sem derramar ou espalhar lixo pelo chão. Nada ou quase nada se sabia a seu respeito: sua idade (aparentava uns quarenta e cinco), o verdadeiro nome, onde morava, se tinha família ou o que fazia com tudo aquilo que recolhia. Muito menos satisfazia a maior curiosidade de todos, em especial da molecada: o conteúdo do misterioso pacote.
Todos a chamavam de Maria Mariola. Ela, por sua vez, era indiferente ao apelido. Jamais demonstrou gostar ou não gostar do nome. A hora em que lhe ofereciam comida representava o melhor momento para se tentar saber algo a seu respeito. As donas de casa metralhavam-na de perguntas nessas horas. Ela, sem perder a calma, respondia o que queria. Geralmente preferia balançar a cabeça positiva ou negativamente. Falar mesmo, um ou outro monossílabo. O mais comum, entretanto, era manter-se calada diante das perguntas curiosas, alheia a tudo e a todos. Ou então, dar respostas que nada tinham a ver com o que lhe perguntavam.
Nem nos momentos em que a garotada resolvia perturbá-la perdia a calma. Apressava os passos e saía da área de atrito com rapidez e sem nenhuma reação.
Certa vez, um grupo de moleques decidiu segui-la num final de tarde com a intenção de descobrir seu domicílio e, com um pouco de sorte, o mistério do embrulho. O caminho que ela percorreu foi tão longo e tão demorado que os perseguidores, cansados, desistiram e retornaram vencidos sem cumprir a missão. Um deles, o mais espevitado de todos, jurava ter visto, dentro do tal embrulho, um porta-retratos com a foto de uma criança que era a “cara de Maria”.
Um dia, Maria Mariola não apareceu. Nem no outro e nem no seguinte. E nunca mais. Ninguém nunca soube que fim levou aquela Maria triste, silenciosa, solitária, maluca mansa. Teria morrido ? Se alguém no mundo, em especial, sentiu sua falta ninguém nunca poderá dizer. Mas a verdade é que todos que a conheceram e a encontravam todos os dias, durante tantos anos, sentiram sua ausência. Maria se foi. Simplesmente sumiu.
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5 comentários:
Olá, Fábio.
Bom trabalho.
Parabéns
Carlos
Uma história interessante montada em cima de uma mendiga. Terminou sem esclarecer ao certo o que havia no tal embruho. O Carlos Heitor Cony tem um romance, Quase Memória, onde a história se desenvolve em torno de um envelope misterioso e no final tb não esclarece o leitor.
Ganhamos até um comentário do David Santos de Portugal. Vc tem idéia quem seja?
Valeu!
Fabio
David
Obrigado peo comentário, mas o texto é do Carlos Melo, eu só publiquei.
Como vc tomou conhecimento do nosso blog?
Fabio
Prezado Carlos,
Benvindo de volta ao blog!
Feliz Ano Novo, pois hoje é o primeiro dia "de verdade" de 2008.
Ótima crônica, mas vc precisa ir bolando um "Maria Mariola II - 0 retorno", pois todos queremos saber não só o que aconteceu com Maria como principalmente o conteúdo do embrulho...
Um abraço
Olá Carlito,
não havia lido a sua crônica.
Maria Mariola está um primor!
Quem não conheceu um tipo como este?
Cinqüenta anos atrás, em Conservatória, havia o Denanci.
O pessoal quer que você "descubra" o que havia no tal pacote...
E precisa?
Parabéns!
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