quarta-feira, 16 de julho de 2008

A mulher que não virava a página

Therezinha Mello


Cristina prefere viver assim, considerando o presente uma inutilidade e olhando fixamente o passado, como se ele fosse um casaco de peles na vitrine da Casa Canadá. No discurso, abusa dos Pretéritos, por achá-los portadores dos bons tempos. Perfeito, Mais que Perfeito, ou até Imperfeito, são capazes de trazer de volta, com correção e elegância, o que preserva na memória com o cuidado de um colecionador de cristais. Alimenta a própria vida com o ressoar do que já não é mais, como se dos seus setenta anos, apenas parte deles tivesse de fato valido a pena.

Carioca, mora no bairro do Flamengo, onde nasceu. A juventude passou realizando o sonho de ser aeromoça. Em 1958, quando tinha vinte anos, conheceu Roberto, nas famosas “asas da Panair”. Era o seu primeiro vôo no Constellation e ainda hoje é capaz de reproduzir mentalmente, cada palavra do diálogo que tiveram. Sente prazer em dedicar-se a essa divagação, especialmente quando seus olhos assistem da janela, as decolagens do Aeroporto Santos Dumont. Possivelmente, conferiu à expressão “terra firme” um novo significado, depois que casou com Roberto, dois anos depois de conhecê-lo.

Cristina continuou trabalhando, depois de casada, o que não era comum naqueles anos dourados. Amou Roberto profundamente, e nunca trabalhou tanto como depois de, aos quarenta e cinco anos, ele morrer, de um minuto para o outro, vítima de um ataque cardíaco. Passados os primeiros dias, resolvidas as questões mais práticas, deixou as crianças com sua mãe e só ansiava por voar. Muitas vezes, desejou explodir naquele céu azul e nunca mais pousar. Aliás, ela acha mesmo que nunca mais pousou. Que permaneceu pelos céus buscando Roberto e repetindo, compulsivamente, o diálogo que tinha mudado sua vida.

Mantém o corpo esguio, apesar da ingratidão com que os hormônios costumam tratar as mulheres que desabrocham, eternas, para os quarenta anos. Os cabelos suavemente grisalhos mostram que o tempo recusa-se a devastá-la. Antes sopra-lhe com suavidade seus ecos, como uma brisa de outono, desenhando-lhe mechas elegantes de um branco discreto. Veste-se com beleza e discrição. Se já não pode recorrer aos antigos figurinos que guarda, empilhados, no quarto de quinquilharias, mantém-se fiel a algumas casas mais clássicas. Lojas especializadas, que lhe vendem o que seria a moda atualizada da revista A Cigarra, como um toque nostálgico que a deixa feliz.

E foi assim que Cristina foi surpreendida ao acomodar-se à mesa em um restaurante, no último domingo. O filho a havia chamado para o almoço e ela encontrou-se com ele depois de estacionar o carro. Esse também era um velho hábito. Cristina foi uma das primeiras mulheres cariocas a dirigir um automóvel. Depois de beijar os netos e abraçar o filho que, em tudo, lhe lembrava Roberto, percebeu que na mesa em frente estava Adalgiza Colombo, a miss Distrito Federal de 1958. Linda e delicada sorriu para Cristina ao perceber sua admiração.

Ela olhou em volta e constatou, talvez pela primeira vez na vida, que o tempo tinha passado. Abriu o cardápio e procurou não pensar nisso. Precisava de uma bebida forte. Olhou os netos com carinho e sorriu, enquanto o velho diálogo começou seu desfilar patético mais uma vez, sem que ela pudesse mudar seu curso teimoso e determinado. De novo a antiga página que não conseguia virar, apesar de todas as evidências. Pensou que seria melhor escolher o prato e esquecer a mesa em frente, imaginando que o presente era mesmo uma inutilidade.

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