quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Tatá

Eu tinha cinco ou seis anos quando a conheci, e ela estaria beirando os quarenta. Fora transferida para ensinar psicologia na Escola Normal Oficial da cidade onde o irmão, mais velho do que ela, casado, com cinco filhos, dirigia uma indústria têxtil.

Muito amiga do irmão – embora este se divertisse a provocar sua irritação, o que raramente conseguia – e mais ainda da cunhada, aceitou de bom grado o convite e foi morar com eles. Com eles morou, de forma intermitente, durante quase quarenta anos.

Não era bonita, mas também não era feia. Alta, de corpo bem feito, tinha um porte altivo que impressionava mais do que uma simples beleza convencional.

Rebelde, sem ser revoltada, tinha e mantinha seus pontos de vista com argumentos inteligentes e baseados em sólida cultura humanística. Isso levava a discussões acaloradas com o irmão, também senhor de cultura diversificada.

Professora primária, formada em pequena cidade do interior, onde morava a família, com dezessete anos entrou para a Escola de Aperfeiçoamento de professores em Belo Horizonte, tornando-se a aluna mais jovem daquela que, depois, se tornaria o Instituto de Educação.

Católica praticante, sem ser carola, não admitia que se pusesse em dúvida os ensinamentos da Igreja. A publicação do livro “E a Bíblia tinha razão”, enorme sucesso editorial na época, estimulou seu espírito combativo e, onde quer que tivesse oportunidade, declarava, para quem quisesse ouvir, ser o título do livro um absurdo porque “onde já se viu pôr em dúvida o que está escrito na Bíblia?!”.

Sua amizade com a cunhada, mulher de grande sensibilidade, tornou sua presença naquela casa – onde poderia ter sido considerada uma intrusa – natural e até mesmo bem-vinda. Contribuiu decisivamente para a manutenção de um ambiente cordial e culturalmente estimulante.

Durante alguns meses, talvez mais de um ano, terminado o jantar ainda conversava um pouco e saia discretamente para seu quarto. O irmão, que gostava de implicar com ela, aproveitava para criticar o seu sono. Somente depois que prestou concurso para catedrática de estatística no Instituto de Educação em Belo Horizonte, soube-se que ela se retirava para estudar, sem alarde.

Parece que não fazia muita fé em sua aprovação, isto porque o outro candidato era o professor interino da cadeira, o que lhe dava uma vantagem comparativa. Surpreendeu a todos ao ser aprovada e classificada em primeiro lugar, o que lhe valeu a conquista da cátedra.

Mas não parou por aí. Pouco depois prestou concurso para chefiar – e na realidade para organizar a partir do nada – o serviço de seleção de um grande banco estatal. Foi aprovada com louvor e durante anos viajou pelo país a organizar exames de seleção de candidatos a emprego.

Ao lado de seus inúmeros triunfos profissionais e culturais, passou por uma grande frustração. Não conseguiu jamais realizar o seu sonho de dirigir o próprio carro. Parecia sofrer de um terrível bloqueio psicológico e, durante meses, cada vez que saía com o instrutor – jovem dotado de inesgotável paciência - tinha que aprender novamente a posição de cada uma das marchas.

Finalmente, em desespero de causa, resolveu apelar para um daqueles procedimentos alternativos que fazem a riqueza de nossa burocracia e conseguiu “adquirir” uma carteira de habilitação, o que a encheu de orgulho. Orgulho de curta duração, porque na primeira saída dirigindo seu “Fusca” recém comprado, subiu na calçada, quase atropelou pedestres e danificou o carro. Daí para a frente desistiu de dirigir e contratou um motorista.

Aposentada mudou-se para a cidade onde morara com o irmão e a cunhada. Foi morar sozinha, apenas com uma empregada que trouxe de Belo Horizonte e com o filho desta, menino com acentuada deficiência mental.

Continuou convivendo intensamente com o irmão, a cunhada, os sobrinhos e, mais tarde, os sobrinhos netos, cuja companhia lhe trazia grande alegria e lhe permitia – como gostava de frisar - manter-se atualizada com o mundo dos jovens.

Nunca se soube o que quer que fosse de sua vida sentimental, e nem se sabe se a teve. Parece ter sido uma página não escrita. Isso porém não lhe causou qualquer tipo de frustração, ou pelo menos não o demonstrou jamais.

Apesar da extensão e profundidade de sua cultura, apreciava leituras leves, principalmente romances policiais. Era profunda conhecedora da obra de Agatha Christie, Edgar Wallace, S. S. van Dyne e outros autores do gênero. Não apenas lia mas gostava de discutir as tramas com os mais jovens.

No final da vida vitimada por doença neurológica - provavelmente Alzheimer, ainda mal conhecido à época - não mais reconhecia as pessoas. A cunhada, por quem sempre nutriu uma enorme amizade e com quem sempre se entendeu às mil maravilhas, por ser bem mais baixa passou a ser reconhecida somente como “aquela menininha”.

Uma manhã acordou dizendo ter recebido a visita “daquela menininha”. Causou espanto quando se soube, mais tarde, que a cunhada havia morrido subitamente, na noite anterior, vítima de acidente automobilístico.
Faleceu com quase noventa anos, completamente alienada mas aparentando uma grande tranqüilidade. Antes de adoecer já havia tomado todas as providências para que sua fiel empregada e o filho ficassem adequadamente assistidos.

Carlos Augusto – 24 de abril de 2007

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O porre que mudou a história do Brasil

Fabio Bastos

Brasília, Palácio do Planalto, Gabinete da Presidência.
24 de agosto de 1961, seis da tarde — Abri uma garrafa e me servi uma dose generosa. Estavam todos contra mim, as forças armadas, os políticos da oposição e até os do meu próprio partido. Nem parecia que eu havia sido eleito presidente a menos de um ano e varrido com minha vassoura aquele marechal arrogante. Eles esqueceram rápido. O presidente americano havia apresentado um protesto veemente quando reatei relações comerciais com a União Soviética, China e Cuba. Eu queria ter visto a cara dele quando descobriu que também condecorei o Che Guevara. Por aqui também não pegou bem a condecoração, meus ministros militares não gostaram nem um pouco.
Acabou o gelo, servi uma dose caubói, dei um gole e despachei uma dúzia de bilhetinhos para meus assessores. Implicavam com tudo que eu fazia, reclamavam das proibições das brigas de galo, corridas de cavalo no meio da semana, lança-perfume e biquíni. Reclamavam até da roupa que eu vestia. Diziam que eu devia ter me ocupado com coisas mais importantes. Eles não sabiam o que era uma administração moderna e eficiente.
Dei mais um gole e a bebida desceu proporcionando uma agradável sensação. Até aquele jornalistazinho cretino que foi eleito governador da Guanabara se virou contra mim e veio falar em complô. Precisava dar uma resposta a altura para cortar as asas dele e colocá-lo no seu lugar. Se ele pensava que ia fazer comigo o que fez com o Getulio estava muito enganado. Decidi fazer um pronunciamento à nação pra mostrar com quem ele estava se metendo.
Reabasteci o copo e me preparei pra escrever o manifesto. Tinha que ser algo firme e contundente, algo que calasse a boca dele e mostrasse quem manda no país. Decidi transformar o manifesto numa carta de renúncia. Era isso! Ia dar um susto na nação ameaçando renunciar pra mostrar que eles precisavam mais de mim do que eu deles.
A idéia me empolgou, bebi num só gole e tornei a encher o copo. As palavras se multiplicavam no papel enquanto o copo se esvaziava. Já passava de meia-noite quando terminei a carta e a garrafa. Uma carta que iria sacudir o país. Fiquei cansado, mas satisfeito. Sem condições para ir até meu quarto dormi como estava no sofá do gabinete.
25 de agosto de 1961, seis da manhã — Acordei numa tremenda ressaca com a cabeça pesada e a boca amarga. Encontrei em cima da mesa a carta renúncia ao lado da garrafa vazia. Lembrei-me vagamente do que se passara na noite passada. Meu primeiro impulso foi rasgá-la, mas resolvi ler o que havia escrito. Fiquei sem saber quem eram as tais forças ocultas que mencionei, mas gostei do mistério que dava um toque de realismo ao pedido. Decidi enviar a carta como estava. Coloquei-a num envelope, lacrei-o e deixei-o na mesa da minha secretária com um bilhetinho para encaminhá-lo ao presidente do congresso às dez da manhã. Segui para meus aposentos e mandei Eloá preparar as malas porque íamos viajar.
Onze da manhã – No vôo para casa imaginei o impacto que a carta estaria causando e a cena do presidente do congresso reunido com os ministros militares discutindo meu pedido de renúncia. Eles nunca iriam aceitar e entregar o país para o meu vice. Ruim comigo, pior com ele e eles sabiam disso. Já instalado em meu apartamento em São Paulo aguardei a ligação de Brasília me implorando para voltar. Eu iria sair fortalecido daquela crise e imporia minhas condições. Eles não perdiam por esperar.
Três da tarde — O telefone tocou e fui comunicado que minha renúncia fora aceita e que eu já não era mais o Presidente da República. Meu governo durara apenas sete meses. O tiro havia saído pela culatra. Abri uma garrafa e bebi pra esquecer.