Therezinha Mello
O filme Luz Silenciosa, do diretor mexicano Carlos Reygadas, passa-se numa comunidade de menonitas. Um grupo religioso fechado que mantém seus costumes ao longo de séculos, de forma radical. Falam um dialeto. Os hábitos são muito simples, os costumes rígidos. Vivem com o mínimo necessário. São poucos, numa convivência restrita.
A certa altura, o protagonista Johan admite estar traindo a mulher Esther. Sente pela amante atração irresistível. Sofre. Mas o desejo é maior que tudo. A certa altura Johan e Esther seguem de carro por uma estrada de barro, sob chuva torrencial. O diálogo, embora contido, é forte e sofrido. Falam do caso extraconjugal de Johan. Esther pede ao marido que pare o carro. Chorando, desce, apanha o guarda-chuva e pede para que não a siga.
A cena seguinte mostra Johan andando pela mata, ainda sob forte chuva, à procura da mulher. Percebe, ao longe, seu corpo caído. O guarda-chuva afasta-se, levado pelo vento. Ele a traz nos braços. Esther está morta. Segundo os médicos, sofreu uma síncope cardíaca. As tomadas seguintes mostram o funeral de Esther.
Em determinado instante ela abre os olhos. Tinha sofrido uma narcolepsia. O filme, de uma luz inesquecível, e que começara com um belo amanhecer, termina num anoitecer que fecha a história e um ciclo de vida. Semeia em quem assiste a urgência de rever Reygadas. Sua luz tem muito a dizer. Esther e Johan algo a viver ainda, juntos.
O instante em que Esther deixa o automóvel e segue sozinha é determinante. Algo a impele à solidão absoluta. Ali ela acaba sucumbindo à dor imensa de saber que Johan tem outra mulher. O marido é um homem bom, mas o desejo humano sobrepõe-se à rigidez dos costumes e da moral. Esther não tem como reagir. Percebe-se totalmente só.
Os jornais desta semana falam da morte do economista Gabriel Buchmann. No Malauí, país africano entre os mais pobres do mundo. A vila de Mulanje, ao pé da montanha, é de uma pobreza impressionante. Vivem com muito menos do que precisam. A mesma força que levou Gabriel a conhecer vinte e seis países em um ano perseguindo um sonho, estranhamente o levou a dispensar o guia. Algo o impulsionou à solidão absoluta, a partir da convicção de que conseguiria sozinho. Um momento de autoconfiança exagerada. Ou de necessidade de abraçar todo o prazer daquela conquista, sem nenhuma companhia. Acenando para uma tela digital, chorando de alegria.
Veio a mudança de tempo. A adversidade da natureza que também acabou matando a Esther de Reygadas. Na ficção, Esther voltou a sorrir consciente, depois de horas de um sono tão profundo quanto assustador. Gabriel não teve a mesma sorte. Sua morte é definitiva. Morreu de frio, às vésperas de retornar ao Brasil. Era um lugar bonito e tranqüilo. A luz, deslumbrante. A solidão, absoluta.
terça-feira, 18 de agosto de 2009
domingo, 16 de agosto de 2009
Ah! Se tu soubesses!
Therezinha Mello
Setembro de 1968. Aquela poderia ter sido apenas mais uma saída para o fotógrafo Walter Firmo. No subúrbio de Ramos, Rio de Janeiro, morava Pixinguinha. Walter chegou, acompanhado do repórter que entrevistaria o músico. O quintal sombreado por imensa mangueira. Um bucólico jardim com dálias e rosas. A cadeira de balanço austríaca - encosto protegido por tecido estampado - esquecida sob a árvore. Pronto o cenário. Terminada a entrevista, Walter convida o Mestre para sentar-se ali e deixar-se simplesmente fotografar. Ele, generosamente, atende ao pedido.
Um fotógrafo nunca tem certeza da boa foto. Ela é um instante, que pode perder-se, para nunca mais. Há que insistir e acreditar. Especialmente em tempos não digitais. Contava com trinta e seis poses. A oportunidade era única. Walter estava diante do mestre Pixinguinha. Longe do palco. Recostado à cadeira. Reflexivo. Calça branca, paletó azul. Às mãos, o saxofone. Walter disparou o primeiro clique.
Um momento eterno e de plena mansidão. O músico era captado em flashs, no silêncio da antiga Rua Pixinguinha. No lento balançar fechou levemente os olhos. Não precisava falar. A flauta e o velho sax já haviam dito quase tudo. Começara a tocar muito cedo, entre a bola de gude e a pipa. “- Pizindim, Pizindim, você tem a “cabeça boa” pra música.”. O apelido que a avó africana lhe havia dado ficara para sempre. Virou Pixinguinha. Matava aula pra tocar na Lapa. E, ainda por cima, vestindo o uniforme do São Bento! Ê tempo bom!
As cenas passavam-se rápidas. Toda a sua vida cabia ali, sob a mangueira florida, bem ao lado do seu jardim. As fotos seguiam. As lembranças também. Os velhos companheiros Donga e João Pernambuco. A casa de Tia Ciata: choro na sala e samba no quintal. Os pensamentos eram como notas musicais. Tinham sempre destino certo. Nunca se perdiam.
Naquele ano comemorava setenta anos. Setenta e um. Ele era meio distraído. Tinha oficializado o registro de batismo com um equívoco no ano de nascimento. Só ele mesmo! Pra comemorar, iam fazer um espetáculo no Teatro Municipal. Pensou que, há mais de cinqüenta anos, era um dos Oito Batutas. O conjunto apresentara-se naquela mesma Avenida Rio Branco. Na sala de espera do Cinema Palais.
“- Mestre, terminamos.”. A voz forte de Walter Firmo concluía a sessão de fotos. “- Eu prometi que seriam só cinco minutos!”. Ele sorriu de um jeito calmo. Bonachão. Os amigos de Pixinguinha costumavam lhe chamar de santo. Talvez pela nobreza de coração. Ou pelo talento, divino com toda a certeza. Muito acima do que quer que possamos considerar mortal. Vinícius chegou a dizer certa vez que, “se não fosse Vinícius, queria ser Pixinguinha”. Aquela tarde talvez tenha sido um de seus momentos contemplativos, em que levitou sem ninguém perceber. Buscou-se a si mesmo num vôo solo e tranqüilo. Despertou-o a última foto.
Walter deixou o subúrbio de Ramos de volta à revista Manchete. Sabia que suas lentes haviam captado imagens que ficariam para sempre. Do portão, Pixinguinha acenava com seu jeito simples de estar no mundo. Em passos brandos, o encantador maestro Alfredo da Rocha Viana retornou à sua sala de estar. Era como se tivesse andado léguas. Não há dúvida de que tinha ido muito mais longe do que pudera sonhar. Do que mestre Batina, o primeiro professor, poderia supor. Continuaria seguindo em frente. Na companhia da flauta, do sax e do antigo piano. Parceiros definitivos nos acordes geniais de “Rosa” e “Carinhoso”.
Setembro de 1968. Aquela poderia ter sido apenas mais uma saída para o fotógrafo Walter Firmo. No subúrbio de Ramos, Rio de Janeiro, morava Pixinguinha. Walter chegou, acompanhado do repórter que entrevistaria o músico. O quintal sombreado por imensa mangueira. Um bucólico jardim com dálias e rosas. A cadeira de balanço austríaca - encosto protegido por tecido estampado - esquecida sob a árvore. Pronto o cenário. Terminada a entrevista, Walter convida o Mestre para sentar-se ali e deixar-se simplesmente fotografar. Ele, generosamente, atende ao pedido.
Um fotógrafo nunca tem certeza da boa foto. Ela é um instante, que pode perder-se, para nunca mais. Há que insistir e acreditar. Especialmente em tempos não digitais. Contava com trinta e seis poses. A oportunidade era única. Walter estava diante do mestre Pixinguinha. Longe do palco. Recostado à cadeira. Reflexivo. Calça branca, paletó azul. Às mãos, o saxofone. Walter disparou o primeiro clique.
Um momento eterno e de plena mansidão. O músico era captado em flashs, no silêncio da antiga Rua Pixinguinha. No lento balançar fechou levemente os olhos. Não precisava falar. A flauta e o velho sax já haviam dito quase tudo. Começara a tocar muito cedo, entre a bola de gude e a pipa. “- Pizindim, Pizindim, você tem a “cabeça boa” pra música.”. O apelido que a avó africana lhe havia dado ficara para sempre. Virou Pixinguinha. Matava aula pra tocar na Lapa. E, ainda por cima, vestindo o uniforme do São Bento! Ê tempo bom!
As cenas passavam-se rápidas. Toda a sua vida cabia ali, sob a mangueira florida, bem ao lado do seu jardim. As fotos seguiam. As lembranças também. Os velhos companheiros Donga e João Pernambuco. A casa de Tia Ciata: choro na sala e samba no quintal. Os pensamentos eram como notas musicais. Tinham sempre destino certo. Nunca se perdiam.
Naquele ano comemorava setenta anos. Setenta e um. Ele era meio distraído. Tinha oficializado o registro de batismo com um equívoco no ano de nascimento. Só ele mesmo! Pra comemorar, iam fazer um espetáculo no Teatro Municipal. Pensou que, há mais de cinqüenta anos, era um dos Oito Batutas. O conjunto apresentara-se naquela mesma Avenida Rio Branco. Na sala de espera do Cinema Palais.
“- Mestre, terminamos.”. A voz forte de Walter Firmo concluía a sessão de fotos. “- Eu prometi que seriam só cinco minutos!”. Ele sorriu de um jeito calmo. Bonachão. Os amigos de Pixinguinha costumavam lhe chamar de santo. Talvez pela nobreza de coração. Ou pelo talento, divino com toda a certeza. Muito acima do que quer que possamos considerar mortal. Vinícius chegou a dizer certa vez que, “se não fosse Vinícius, queria ser Pixinguinha”. Aquela tarde talvez tenha sido um de seus momentos contemplativos, em que levitou sem ninguém perceber. Buscou-se a si mesmo num vôo solo e tranqüilo. Despertou-o a última foto.
Walter deixou o subúrbio de Ramos de volta à revista Manchete. Sabia que suas lentes haviam captado imagens que ficariam para sempre. Do portão, Pixinguinha acenava com seu jeito simples de estar no mundo. Em passos brandos, o encantador maestro Alfredo da Rocha Viana retornou à sua sala de estar. Era como se tivesse andado léguas. Não há dúvida de que tinha ido muito mais longe do que pudera sonhar. Do que mestre Batina, o primeiro professor, poderia supor. Continuaria seguindo em frente. Na companhia da flauta, do sax e do antigo piano. Parceiros definitivos nos acordes geniais de “Rosa” e “Carinhoso”.
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